O trecho central da Ferrovia Norte-Sul, inaugurado em maio de 2014 e entregue à iniciativa privada em leilão no último dia 28, é um símbolo da inoperância estatal no Brasil. Após investimentos de R$ 5,1 bilhões, apenas seis cargas percorreram o trajeto de 855 quilômetros entre Porto Nacional (Tocantins) e Anápolis (Goiás) nos cinco primeiro anos. Três delas para transportar trilhos, vagões e locomotivas. Foram 60 mil toneladas – apenas 1% do total previsto para a Norte-Sul no período.
O trecho norte, de Açailândia (Maranhão) a Porto Nacional, é operado pela VLI – grupo liderado pela Vale – desde 2010. O volume anual movimentado na ferrovia saltou de 3 milhões de toneladas em 2012 para 5,2 milhões de toneladas em 2016. Com 720 quilômetros de extensão e investimentos de R$ 2,6 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PSC), essa estrada transporta milho, soja, minerais, celulose e combustíveis. Em Açailândia, conecta-se com a Estrada de Ferro Carajás, que acessa o porto São Luís/MA.
LEIA TAMBÉM: Pensão das filhas maiores do Exército: contribuição de militares não cobre nem 10% da despesa
O blog visitou a ferrovia operada pela estatal Valec, em Anápolis, um dia após o leilão do trecho que rendeu à União R$ 2,7 bilhões à vista – com ágio de 100% –, mais R$ 2,7 bilhões em melhorias ao longo de 30 anos. O trecho completo, de Porto Nacional a Estrela D’Oeste (SP), tem 1.537 quilômetros e foi entregue à empresa Rumo, ligada ao grupo Cosan. A etapa complementar entre Ouro Verde (GO) e Estrela D’Oeste tem 684 quilômetros e já consumiu R$ 4,7 bilhões. O investimento total deverá fechar em R$ 5,6 bilhões.
Em Anápolis, o aspecto da ferrovia administrada pela Valec é de completo abandono. O mato tomou conta do acostamento na entrada do túnel sob o bairro Novo Paraíso. O seu interior virou moradia para mendigos. Logo na entrada, há uma cadeira quebrada, trouxas de roupas velhas e fezes humanas secas. Pelas paredes escorre água em alguns pontos de infiltração. Sobre a entrada do túnel, há rachaduras na parede de proteção. Os moradores vizinhos afirmam que raramente passam trens por ali.
LEIA TAMBÉM: Aposentadoria especial: reforma assegura ‘direito adquirido’ da velha e da nova política
A situação é um pouco melhor no túnel sob a Avenida Brasil Sul e a BR-153, distante apenas um quilômetro da sede da Valec em Anápolis. Não há mais arbustos na entrada do túnel, como verificamos em setembro de 2017, mas ainda há muito mato no acostamento.
Ferrovia da integração
A Ferrovia Norte-Sul foi iniciada em 1987, no governo José Sarney, com um traçado original de 1.550 quilômetros entre Açailândia e Anápolis. Trinta e dois anos e sete presidentes da República depois, a Norte-Sul é apontada pela Valec como “o eixo estruturador” do Sistema Ferroviário Nacional, possibilitando o acesso a vários portos e corredores de exportação.
O trecho central, de Porto Nacional a Anápolis, é estratégico porque vai se conectar, um dia, em Figueirópolis (TO), à Ferrovia de Integração Oeste Leste (FIOL), que acessará o Porto Sul, nas proximidades de Ilhéus (BA) – tudo isso ainda em construção. A FIOL terá 1.527 quilômetros. Apenas a parte em construção, de Ilhéus a Barreiras (BA), tem 1.022 quilômetros e investimento previsto de R$ 6,4 bilhões.
LEIA TAMBÉM: Corte de privilégios ou resgate de direitos? O discurso dúbio de Bolsonaro para os militares
Em Campinorte (GO), o trecho norte se interligará à Ferrovia de Integração do Centro Oeste (FICO), que escoará a produção de soja e milho do Mato Grosso em direção aos principais portos do país. Serão mais 901 quilômetros de ferrovia a um custo de R$ 6,1 bilhões. O projeto ainda está na prancheta.
Expectativa inicial alta
A Valec tinha expectativa alta para os primeiros anos de funcionamento da Ferrovia Norte-Sul. Foram estabelecidos cenários de crescimento para aproximadamente 30 anos, contados do início da operação. Foram traçados ciclos de cinco a sete anos, com previsão de cargas de até 6 milhões de toneladas no primeiro ciclo. Passados de cinco a sete anos, seriam 14 milhões. No próximo ciclo, 20 milhões; depois, 24 milhões; até chegar a 26 milhões de toneladas.
Mas a Valec não fez a sua parte. No trecho que operou, o movimento foi escasso. Em vez do transporte de grãos aos portos, parte significativa das cargas foi de máquinas e equipamentos para a empresa que opera o trecho Norte.
LEIA TAMBÉM: É para rememorar? Então vamos falar de golpe, ditadura, censura, tortura…
A primeira carga foi de 20 locomotivas para a VLI, de fevereiro de 2015 a junho de 2018. Em dezembro de 2015, foram transportadas 26 mil toneladas de farelo de soja. De dezembro de 2016 a março de 2017, mais 13 mil toneladas de madeira triturada. Em outubro de 2017, 8 mil toneladas de minério de manganês. Em dezembro do mesmo ano, teve início o transporte de 7,3 mil toneladas de barras de trilhos de 240 metros. De março de 2018 a janeiro deste ano, 262 vagões da VLI foram transportados pelo trecho central.
Não bastam os trilhos
Questionada sobre a subutilização do trecho central, a Valec informou que o transporte nesse trecho dependia da iniciativa privada, das negociações entre os operadores e clientes, e do interesse dos operadores logísticos ferroviários. A estatal lembrou ainda que não possuía “locomotivas e vagões”, mas disponibilizava a utilização de suas vias aos operadores interessados.
A VLI explicou como alcançou um elevado volume de cargas em tão pouco tempo: “Para uma ferrovia transportar um volume desses não é necessário apenas os trilhos. É preciso locomotivas e vagões para transportar a carga, terminais rodoferroviários para transferir as cargas para os trilhos, boas estradas para levar essas cargas das fazendas até os terminais rodoferroviários e, principalmente, capacidade portuária”.