Pelo terceiro ano consecutivo, como o governo federal gasta mais do que arrecada, é obrigado a endividar-se para pagar despesas com salários e custeio, descumprindo a “regra de ouro”. E mais uma vez aproveita uma brecha prevista na Constituição Federal para lançar mão das despesas condicionadas à autorização do Congresso Nacional. Neste ano, o governo Bolsonaro baterá um recorde com esse orçamento extra: R$ 450 bilhões – ou 30% da despesa primária da União.
Em 2021, as despesas com pessoal e encargos cobertas por programações condicionadas somam R$ 120 bilhões. As despesas com remuneração dos militares ativos e inativos das Forças Armadas representam a situação mais grave: do total previsto no ano, 75% estão condicionados à aprovação legislativa, segundo informa relatório do Instituto Fiscal Independente do Senado (IFI).
Mas há outras despesas ainda maiores. No caso de servidores ativos civis, a verba condicionada ficou em R$ 47 bilhões, enquanto a parte não condicionada chegou a R$ 83 bilhões. A remuneração de aposentados e pensionistas civis teve R$ 17 bilhões no orçamento “extra”, enquanto a parte não condicionada alcançou R$ 70,5 bilhões. Os benefícios previdenciários tiveram R$ 272 bilhões condicionados à aprovação do Congresso. A parte não condicionada somou R$ 413 bilhões.
“É proibido, mas pode”, diz economista
Desde 2019, a União não cumpre a “regra de ouro”, prevista no inciso III do art. 167 da Constituição. A norma veda que as operações de crédito excedam as despesas de capital em cada exercício financeiro. O economista e fundador das Associação Contas Abertas – especializada em fiscalização dos gastos públicos, – Gil Castello Branco, explica o que isso significa na prática.
“A regra de ouro, prevista na Constituição, é um mecanismo que proíbe o governo de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como salários, benefícios de aposentadoria e outros custeios da máquina pública. O que é proibido, contudo, pode ser autorizado pelo Congresso Nacional. Em outras palavras, não pode, mas pode”, ironiza o economista.
Ele acrescenta: “O que era para ser uma exceção virou rotina. Há três anos, o Executivo solicita e o Legislativo aceita que o governo se endivide para pagar despesas do dia a dia. Tal como uma família que já chegou a um grau de desequilíbrio em que precisa pedir empréstimo a um banco para poder almoçar, jantar e pagar a conta de luz”.
Castello Branco argumenta que, “no atual contexto fiscal, é impossível ao governo, qualquer que seja o presidente ou o partido no poder, cumprir a regra de ouro. A solução definitiva para o cumprimento dessa regra, sem que o Executivo fique anualmente refém do Congresso, passa pela revisão da excessiva rigidez orçamentária e pela contenção das despesas obrigatórias”.
O Instituto Fiscal avalia que a combinação de déficit primário e elevada conta de juros aumenta a necessidade de financiamento por meio de operações de crédito. A queda nos gastos com investimentos, por sua vez, reduz as despesas de capital. “Os dois fatores atuando conjuntamente dificultam o cumprimento da regra e compõem um cenário que não será fácil de reverter nos próximos anos”, prevê o instituto.
Autorização antecipada em 2021
A autorização legislativa ocorre por meio de um crédito suplementar ao Orçamento. Assim, só pode ocorrer após entrada em vigor da lei orçamentária. Neste ano, porém, foi aberta mais uma exceção, como destaca relatório do Instituto Fiscal. Com o atraso na tramitação do Orçamento de 2021, havia o risco de que parcela dos gastos passível de execução fosse insuficiente para fazer frente à necessidade dos primeiros meses do ano. Projeto de Lei do Congresso, o PLN 1/2021, aprovado no dia 17 de março, autorizou a execução da programação condicionada antes da aprovação do Orçamento.
Em 2019, as programações condicionadas somavam R$ 249 bilhões. No fim do exercício, o desequilíbrio acabou ficando em R$ 185 bilhões, segundo dados do Instituto do Senado. Em 2020, os gastos condicionados somavam R$ 344 bilhões no momento da aprovação do Orçamento. No fim do ano, o excesso de operações de crédito ficou em R$ 346 bilhões.
Mas a observância da regra foi dispensada pela Emenda Constitucional 106/2020, o chamado “Orçamento de Guerra”, que instituiu regime fiscal extraordinário em razão da calamidade provocada pela Covid-19. Os gastos realizados para combate à pandemia totalizaram R$ 528 bilhões. Em 2021, os gastos condicionados no Orçamento da União somam R$ 454 bilhões.
Guedes defende crédito suplementar
Na tramitação do PLN 8/2020, que autorizava mais uma quebra da “regra de ouro”, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu o projeto. Em 2 de abril de 2020, o ministro enviou mensagem ao presidente Jair Bolsonaro propondo a abertura de crédito suplementar ao Orçamento da União no valor de R$ 343 bilhões. Destacou que esses recursos seriam “alocados em despesas primárias, uma vez que tais recursos se encontram acima do valor global de despesas de capital”.
Mais adiante, explicou o motivo da operação: “O presente crédito visa possibilitar o atendimento de despesas relevantes, referentes a pessoal e encargos sociais, e a outras despesas correntes, em diversos órgãos do Poder Executivo, de transferências a estados e municípios e de operações de crédito, com recursos provenientes de operações de crédito”.
Ressaltou, finalmente, que, de acordo com o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, ficou “dispensado o atingimento dos resultados fiscais” previstos na LDO de 2020, em decorrência do reconhecimento do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020.
No dia 8 de abril, o secretário-geral da Presidência da República, Jorge Oliveira, encaminhou ao Senado Federal o projeto de lei que abria crédito suplementar de R$ 343 milhões para reforço de dotações do Orçamento da União. No dia 21 de maio, o PLN 8/21 foi aprovado pelo plenário do Congresso. Em 3 de junho, a Lei 14.008/21 foi sancionada pelo presidente Bolsonaro, assegurando os créditos especiais para pagar remuneração de servidores e pensionistas e despesas de custeio.
Economia prevê dívidas até 2024
O Ministério da Economia afirmou ao blog que as dotações condicionadas precisam de envio de projeto de lei de crédito suplementar a ser aprovado por maioria absoluta do Congresso Nacional. Mas destacou que a Lei Orçamentária Anual autoriza a abertura desses créditos, por ato do Poder Executivo, mediante anulação de dotações condicionadas, “o que permite a antecipação dessas dotações, com concomitante redução da necessidade de endividamento”.
O ministério foi questionado se não estaria havendo uma burla à “regra de ouro”, uma vez que que esse princípio constitucional estabelece que o governo não pode se endividar para pagar despesas de custeio. Há a ressalva para os casos com autorização legislativa, mas o endividamento para pagar despesas de custeio virou a regra geral. A Economia respondeu que o encaminhamento de projeto de lei de crédito suplementar está previsto no art. 167, inciso III, da Constituição, “portanto, trata-se de medida prevista legalmente, o que não caracteriza burla à legislação”.
Questionado até quando o governo federal vai continuar se endividando para pagar custeio. O Ministério respondeu que as projeções da margem da “regra de ouro” para o médio prazo se encontram no Anexo de Riscos Fiscais da LDO. “Dado o cenário fiscal prospectado no PLDO 2022, haveria necessidade de se recorrer a operações de crédito em montante superior ao das despesas de capital tanto para 2022 quanto para 2023 e 2024”. As projeções indicam os valores de R$ 293 bilhões em 2020, R$ 231 bilhões em 2023 e R$ 279 bilhões em 2024.
O ministério acrescentou que o cenário base contempla estimativas preliminares, com base em hipóteses simplificadas. “O mesmo deve ser atualizado quando da elaboração do Projeto de Lei Orçamentária, momento em que serão definidas com maior exatidão a necessidade de operações de crédito para o financiamento das despesas orçamentárias, bem como serão atualizados os parâmetros macroeconômicos que afetam as projeções de despesas de capital”.
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