Criada no início do governo Lula, em março de 2005, para produzir medicamentos para hemofílicos a preços mais baixos, a estatal Hemobrás já consumiu R$ 1 bilhão dos cofres públicos e ainda não conseguiu concluir a construção da sua fábrica de hemoderivados. O passivo com fornecedores fechou o ano de 2016 em R$ 599 milhões, sendo R$ 586 milhões em moeda estrangeira. A estatal não produz medicamentos e gera cada vez mais despesas.
No final do ano passado, a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) tinha um ativo imobilizado de R$ 797 milhões, o que corresponde ao valor de mercado. Mas laudo de empresa contratada constatou “evidências de perda de valor recuperável”. Isso representa a perda em função dos projetos que ainda não entraram em operação, mas apresentam uma desvalorização no mercado.
A Hemobrás estima ainda a saída de recursos em função de processos judiciais, a maior parte em ações trabalhistas – cerca de R$ 64 milhões. A empresa tem hoje 200 funcionários, sendo 184 concursados, além de três diretores e 11 conselheiros. A maior remuneração entre os administradores chega a R$ 31 mil. Entre os empregados, R$ 22 mil, com média de R$ 9,4 mil. A folha de pagamento custa R$ 32 milhões por ano.
O atraso na construção da fábrica de hemoderivados (foto abaixo), em Goiana (PE), também gerou prejuízos. Em 2009, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou irregularidades graves na licitação para as obras da planta industrial, como restrição à competitividade e preços acima do mercado. A licitação foi anulada e a construção sofreu mais dois anos de atraso.
Em setembro do ano passado, o TCU apontou novos indícios de irregularidades graves, agora em contrato firmado em 2011 e com vencimento previsto para o final de 2016. O tribunal estava para determinar a paralisação da obra. A Hemobrás, então, não renovou o contrato e começou a preparar novas licitações para a retomada da construção, que atingiu 70% do total das obras no final do ano passado.
Caso de polícia
As fraudes em licitações da Hemobrás viraram caso de polícia em dezembro de 2015. O presidente da estatal, Rômulo Maciel, nomeado por Lula e reconduzido por Dilma Rousseff, chegou a ser preso na Operação Pulso, da Polícia Federal. Durante as buscas e apreensões, maços de dinheiro foram jogados do edifício onde morava Maciel Filho, que foi afastado do cargo.
O esquema atuava nos contratos de logística de plasma e hemoderivados, além da construção da fábrica. Os policiais apuraram indícios de que parte do dinheiro seria usado para financiar campanhas políticas no Nordeste.
Em agosto do ano passado, Maciel retornou ao cargo por um dia após decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) na 5ª Região. Mas foi dispensado da presidência no dia seguinte pelo presidente Michel Temer.
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A Operação Pulso também apurou que amostras de sangue que deveria ser transformado em medicamentos contra a hemofilia e outras doenças ficaram inutilizadas por terem sido armazenadas de forma inadequada.
O Relatório Administrativo de 2016 da Hemobrás informa que estavam em avaliação 185 mil bolsas de plasma estocadas em armazém externo contratado e 85 mil bolsas que “sofreram excursões de temperatura no transporte”. Comissão técnica da estatal “concluiu pela não utilização do plasma para fracionamento industrial” – a transformação em hemoderivados. Mais um prejuízo.
O prazo de validade do plasma em estoque na Hemobrás também é quantificado no Relatório Administrativo. Até 2019, 18,9% do plasma estará vencido. No ano seguinte, mais 46,8% perderá a validade – totalizando 65,7% do total. Até o final de 2021, todo o estoque estará vencido.
O projeto falho
A Hemobrás foi criada para reduzir a vulnerabilidade científica e financeira do Brasil frente ao mercado internacional, controlado por quatro grandes empresas. Seria a maior empresa do ramo na América Latina, capaz de processar 500 mil litros de plasma por ano. Estaria pronta em três anos, ao custo módico de UR$ 65 milhões. Começou a receber aportes de capital da União em 2005. Os maiores valores foram liberados em 2013 e 2015 – R$ 200 milhões em cada ano. O total dos aportes até dezembro de 2016 ficou em R$ 1,06 bilhão.
Curiosamente, a própria estatal constatou no relatório anual que “o crescimento da receita foi acompanhado da elevação do prejuízo”, que somou R$ 632 milhões de 2013 a 2015. A empresa afirma que, pela primeira vez, houve lucro em 2016 – um total de R$ 117 milhões. Mas o relatório aponta que 57% desse resultado positivo é consequência da variação cambial, dessa vez favorável à Hemobrás. O restante veio de corte de despesas e das operações com medicamentos sintéticos.
Não faltou dinheiro, mas o projeto apresentou falhas desde o início. Em 2007, foi firmado contrato para transferência de tecnologia para a fabricação de hemoderivados com o Laboratoire Français du Fractionnement et des Biotechnologies (LFB). O acordo visava o atendimento de portadores de hemofilia, aids, câncer e imunodeficiências. Seriam produzidos medicamentos como albumina, imunoglobulina e fator VIII.
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Mas a Hemobrás percebeu, em 2012, cinco anos mais tarde, que o melhor caminho para o tratamento de hemofílicos seria a utilização do medicamento fator VIII recombinante – sintético. Fechou, então, uma Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) com a Baxter Internacional que prevê a transferência de tecnologia para a fabricação do produto sintético, obtido por engenharia genética, dispensando o uso do plasma como matéria-prima. A parceria incluiu o fornecimento do medicamento pela Baxter, que foi adquirida pela Shire no ano passado, até que a Hemobrás consiga incorporar a tecnologia e produzir o medicamento – processo que deve durar uns 10 anos.
O Relatório Administrativo do ano passado registra que “o Fator VIII recombinante mostra-se essencial para que a Hemobrás possa atender a 100% da demanda desse medicamento, já que o fator VIII derivado do sangue produzido pela empresa atenderá apenas 10% da demanda. Ainda assim, o fator VIII plasmático é fundamental para pacientes que desenvolvem rejeição ao recombinante”.
Custo total de R$ 1,4 bilhão
Mas é claro que a fábrica terá que ser ampliada para fabricar os produtos sintéticos. O custo total estimado já está em R$ 1,4 bilhão. O relatório anual da estatal informa que, “em relação à PDP do fator VIII recombinante, o baixo ritmo de execução das obras e um elevado passivo como o parceiro tecnológico prejudicaram significativamente o andamento do projeto”.
O faturamento total da Hemobrás em 2016 foi proveniente da venda de um único medicamento, o fator VIII recombinante, batizado de Hemo-8r, uma marca Hemobrás. Desde 2010, a estatal também é responsável pelo fracionamento do plasma brasileiro no exterior, uma vez que a sua fábrica não ficou pronta até hoje. A empresa também distribui os respectivos medicamentos ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Em 2017, surgiu “um elemento bastante desafiador”, como registra o relatório anual. Trata-se da perda do Certificado de Boas Práticas de Fabricação das fábricas do LFB na França, conforme resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicadas em abril e maio deste ano. O mesmo cancelamento já havia ocorrido de outubro de 2012 a novembro de 2014.
Prejuízos anuais de R$ 300 milhões
O ministro da Saúde, Ricardo Barros, afirma que o atraso na construção da fábrica da Hemobrás está causando prejuízos à União: “O fato de a Hemobrás não estar operando tem causado à União prejuízos anuais de 300 milhões, porque ela nos entregaria esses produtos muito mais baratos do que estamos comprando do mercado. Esperamos retomar a construção da fábrica para terminá-la”.
Barros afirma que o país precisa “ter o domínio sobre o recombinante, que é um componente importante para tratar de hemofílicos. No Brasil, o monopólio do sangue é da União. É algo que nós temos que resolver. Acho que vamos avançar na busca de uma solução”.
Ele relatou as negociações do ministério com novos investidores. Segundo ele, a parceria Octapharma/Tecpar (empresa pública ligada ao governo do Paraná) fez uma proposta de investimentos de US$ 250 milhões para concluir a fábrica de fracionamento em Pernambuco, mais R$ 175 milhões para a construção de uma fábrica de recombinantes no Paraná e outros US$ 50 milhões para terminar a fábrica de fracionamento do Butantan.
“O Butantan não aceitou. A Hemobrás disse que não abriria mão de ter uma fábrica de recombinantes em Pernambuco. Não tem problema porque a política de produção de tecnologia propõe dois parceiros tecnológicos com dois laboratórios oficiais aqui no Brasil”, comentou o ministro.
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Ele afirmou que a concorrência está sendo positiva: “A Shire, que estava propondo investir US$ 30 milhões em Pernambuco, está agora propondo US$ 300 milhões. Ela vai fazer a fábrica de recombinantes e terminar a de fracionamento. É importante ter a concorrência porque, senão, cria-se um monopólio e fica pagando preços que são inaceitáveis em relação ao mercado”.
No início deste mês, o Ministério Público Federal de Pernambuco entrou na Justiça Federal com ação civil pública contra o Ministério da Saúde para que a pasta mantenha o acordo que a Hemobrás firmou em 2012 para fornecimento de medicamentos com a Shire Farmacêutica Brasil. Como publicou a Gazeta do Povo, o MPF também pediu o afastamento cautelar do ministro Ricardo Barros, apontado como “clarividente o desvio de poder” do ministro, que teria assumido publicamente o “interesse político em levar o ‘mercado de sangue’ para o estado do Paraná”.
Em julho, o Ministério da Saúde havia determinado a suspensão da parceria entre a Hemobrás e a Shire, alegando problemas na transferência de tecnologia para a produção do fator VIII recombinante.
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