O presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, ao lado de deputados e dos jornalistas que cobriram a aprovação da nova carta magna do país em 1988. Foto: Paula Simas| Foto:

Amanheci na chapelaria do Congresso Nacional no dia 1º de fevereiro de 1987. A minha pauta era entrevistar o primeiro constituinte que chegasse. Não lembro o seu nome, mas recordo de cada momento marcante, ou mesmo curioso, daqueles 20 meses que resultaram na aprovação da Constituição de 88 – um texto marcado pela generosidade (às vezes demasiada), muitas conquistas e algumas irresponsabilidades.

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Era um momento de renascimento, após 20 anos de uma ditadura militar que deixou como marcas a censura, a cassação de mandatos, as prisões arbitrárias, o exílio, a tortura – sem falar de uma inflação de 215% ao ano e uma enorme dívida externa, resultados do falso milagre econômico.

Era preciso refazer tudo: consertar a economia, devolver os direitos individuais ao cidadão, anistiar guerrilheiros e torturadores, fazer uma reforma política profunda, reduzir os conflitos agrários, melhorar a educação e a saúde da população. A Constituição Federal existente havia sido escrita em volta de uma mesa, por meia dúzia de notáveis servis aos militares.

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Desde o início, ficou clara a determinação de Ulysses Guimarães, o presidente da Constituinte, da Câmara dos Deputados e do PMDB. Os trabalhos começavam pela manhã e entravam pela madrugada. Algo nunca visto no Congresso, nem antes nem depois. E a votação só andava quando o doutor Ulysses estava na presidência. Aquele foi o melhor Congresso em décadas. Tem piorado a cada legislatura.

Tórridos romances

Mas os trabalhos não encerravam com o fim da sessão. As articulações dos políticos e lobistas – do bem e do mal – e os trabalhos dos servidores se estendiam pela madrugada. O QG de Ulysses era o restaurante Piantella, mas as conversas se esparravam pela cidade, seja em residências oficiais ou em casas de lobby no Lago Sul. Jornalistas que cobriam os bastidores trabalhavam mais à noite do que à luz do dia. Romances tórridos entre constituintes e jornalistas nasceram naquelas noitadas.

Havia até uma pelada entre políticos e jornalistas às terças-feiras, no Clube do Congresso, que continuou mesmo anos após o fim da constituinte. O time dos constituintes reunia Lula, Aécio Neves, José Richa, entre outras lideranças. Não havia naquele tempo a polarização e a radicalização entre os políticos de direita e de esquerda. Era um tempo de pacificação e reconstrução.

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Os blocos foram se formando naturalmente, muito além da vontade dos partidos formais. O PMDB havia eleito mais da metade dos constituintes – eram 260 dos 487 deputados. Imaginava que teria o controle da Constituinte. Mas o partido era apenas um amontoado de correntes políticas forjado na luta contra o regime militar. E começou a se esfacelar quando surgiram os debates mais profundos.

Um terço do partido aderiu ao Centrão, bloco também integrado por parlamentares do PFL, PDS, PTB, entre outros de centro-direita. Outra parte do partido, de centro-esquerda, formou uma dissidência e criou o PSDB já na reta final da Constituinte, sob a liderança dos senadores Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, José Richa e do deputado Pimenta da Veiga.

Bolso sem fundo

A Constituição “cidadã”, como definiu Ulysses, assegurou muitos direitos sociais, inclusive na área previdenciária. Muito justo. Mas esqueceu de prever de onde viria o dinheiro para sustentar essas despesas. Ao mesmo tempo, não barrou privilégios já existentes para servidores públicos, militares, parlamentares, magistrados. As viúvas e filhas solteiras dessa elite continuam até hoje sangrando os cofres públicos com suas fabulosas pensões bancadas pelos contribuintes.

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A anistia aos que foram perseguidos pela ditadura previu também a reparação financeira aos demitidos ou afastados de empregos públicos ou privados. Mais do que justo. Mas houve excessos. Muita gente recebeu pagamentos retroativos acima de R$ 2 milhões. Outros recebem pensão acima do teto constitucional. O custo da reparação já supera os R$ 13 bilhões.

O teto constitucional seria implantado por emenda constitucional aprovada em 2003. Mas a sua regulamentação foi confiada ao Congresso Nacional, que sentou em cima do processo. Enquanto os parlamentares não fixam as normas do abate-teto, parlamentares, juízes, governantes e suas viúvas continuam recebendo valores até duas vezes o limite constitucional.

Essa foi outra falha da Constituinte: quando não se chegava a um acordo, a regulamentação era remetida para “legislação infraconstitucional”. Ou seja, ficava para as calendas. Algumas decisões chegaram ao ponto do folclore. Lá pelas tantas, foi aprovado o limite de juros de 12% ao ano. Questionado no plenário da Constituinte, o deputado Delfim Netto (PDS) ironizou: “Agora, só falta revogar a lei da gravidade”. Esse teto foi desrespeitado inúmeras vezes, até porque depende mais das condições macroeconômicas do que da Constituição. Atualmente, está um pouco acima da metade daquele limite.

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Democracia

Entre as conquistas resultantes daquele processo constituinte está o chamado Estado democrático de direito. Ainda há falhas, abuso de autoridade aqui e ali, baixo rendimento e desmandos no Judiciário, omissões e vadiagem no Legislativo, falta de vergonha na cara no Executivo. Mas o sistema jurídico-político funciona. Passamos por dois impeachments em 24 anos e a democracia resistiu. Não houve golpe militar, fechamento do Congresso, cassação de parlamentares, prisões arbitrárias.

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Estamos chegando à oitava eleição presidencial. Esquerda e direita disputam o cargo máximo do país. É lamentável ver um candidato tutelado por um presidiário. É lamentável ter um candidato que já defendeu o fechamento do Congresso e tem o torturador Brilhante Ustra como ídolo. Mas as escolhas são do eleitor. Ou seja, cada povo tem o governante que escolhe.

O vice de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, já defendeu uma nova constituinte de notáveis e até uma intervenção militar caso o Judiciário não resolva o problema político. “Ou as instituições solucionam o problema ou nós teremos que impor isso”, afirmou.

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A dois dias do primeiro turno das eleições, comemoramos 30 anos da Constituinte que enterrou de vez a ditadura. Esperamos todos que não seja necessário um novo recomeço daqui a alguns anos, após um novo período de trevas, perseguições, prisões arbitrárias, torturas…