O pré-candidato a presidente da República Jair Bolsonaro não estava sozinho da prática do nepotismo na década de 1990 e no início deste século. A turma era grande e não tinha limites. A diferença para os demais parlamentares é que ele não assumia ou procurava disfarçar a contratação de parentes. Naquela época, a maioria dos deputados e senadores preferia argumentar que as contratações não eram proibidas por lei – o que era verdade –, embora ferissem princípios constitucionais.
Bolsonaro contratou a atual mulher, Michelle, por um ano e dois meses, em 2007, dois meses antes do casamento. Nos anos 1990, já havia contratado parentes da segunda mulher, Ana Cristina Vale, em gabinetes de correligionários – o chamado nepotismo cruzado. Bolsonaro tentou tergiversar, como diriam os nobres parlamentares: “É minha companheira. Não somos casados. Portanto, não somos parentes”.
Em 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou a decisão que varreu o nepotismo do serviço público. O tribunal entendeu que a contratação de parentes fere o artigo 37.º da Constituição, que exige da administração pública a obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.
Antes disso, a prática corria solta no Congresso Nacional. Em dezenas de reportagens, relatei centenas de casos nos gabinetes de deputados e senadores. Em outubro de 1999, publiquei na Folha de S.Paulo reportagem que apurou o maior número contratações. O trabalho teve a participação dos colegas Ricardo Galhardo, Luíza Damé e Wilson Silveira. Eram 315 parentes abrigados em gabinetes de deputados. Tinha mulher, filhos, pais, netos, sobrinhos, cunhados.
“Ela cuida casa, prepara o meu almoço”
Mais do que os números, o que chamou a atenção foram as explicações de alguns dos nepotistas. O deputado Elton Rohelt (PFL-RR) – vice-líder do governo FHC, conhecido como o “homem da pistola de ouro” nos tempos em que fez fortuna com garimpos e extração de madeira na Amazônia contratou a mulher – Tirzah, no seu gabinete. Mas ela não dava expediente ali nem no escritório do parlamentar em Roraima. Muito franco, ele explicou qual era o papel da sua esposa: “Ela cuida da casa, prepara o meu almoço, faz as compras. Esse dinheiro serve para ela fazer as compras da casa. Assim, não fica me pedindo dinheiro”.
O eterno presidente do Vasco da Gama, Eurico Miranda (PPB-RJ), usou a verba de gabinete para contratar três filhos, um sobrinho e o auxiliar-técnico do time, Alcir Portella. “Eles não estão em emprego público. São funcionários meus, fazem o que eu mando”, explicou o parlamentar, em pleno exercício de outra prática, o patrimonialismo, quando homens públicos não distinguem os limites entre o público e o privado.
“Mateus, Mateus, primeiro os teus”
Na época, os deputados contavam com R$ 20 mil para contratar seus “secretários parlamentares”. Themístocles Sampaio (PMDB-PI) torrou tudo em quatro contratações: três filhos e um neto. O argumento para a façanha foi um misto de deboche e franqueza: “Eles estavam desempregados. Se eu não der emprego aos meus filhos, quem vai dar? E está escrito na Bíblia: Mateus, Mateus, primeiro os teus”. Galhardo apurou que era conversa fiada do deputado. Mateus é personagem do livro sagrado, mas era um cobrador de impostos corrupto que largou a marginalidade para seguir Cristo.
O campeão de contratações foi o deputado Raimundo Santos (PFL-PA), que contratou a mulher, uma filha, um irmão e vários cunhados. Procurado, demonstrou que se achava esperto: “Você deu azar, meu filho. Demiti vários na semana passada”. O cargo de campeão foi mantido.
“Antes de mim, o John Kennedy”
Quatro anos mais tarde, uma nova fornada de parentes nos gabinetes. Eu já estava no jornal Estado de Minas. Mas o número havia caído para 236, talvez por causa das constantes denúncias da imprensa. Chamou atenção a contratação do irmão do deputado Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), Lúcio Vieira Lima, hoje um deputado federal destacado. “Antes de mim, o John Kennedy colocou o irmão Bob Kennedy em seu ministério”, justificou Geddel. Os dois continuam juntos, agora enrolados no caso das malas com R$ 51 milhões.
Mas havia mais deputados espertos. No mesmo dia, 3 de maio, de 2003, os paranaenses José Borba (PMDB) e José Janene (PP), fizeram duas contratações de parentes. Borba contratou a mulher de Janene – Stael –, que contratou a mulher de Borba – Maria Aparecida. Mais 22 deputados haviam acomodado parentes em gabinetes de correligionários. O episódio lembrou um poema de Drummond de Andrade: “Quadrilha”.
“Uma dorme comigo, a outra me pariu”
Em outra reportagem feita no Senado Federal, em 1997, identifiquei como campeão do nepotismo o senador Gilvan Borges (PMDB-AP). Ele contratou a mulher, Marlene; a mãe, Cícera; mais um cunhado e uma prima. Sujeito folclórico, passeava pelos corredores, comissões e plenário de calça jeans, casaco xadrez e sandálias de couro. Fui ao seu gabinete. Ele demonstrou a franqueza que Bolsonaro não teve: “Aqui, 90% do Congresso ficam se escondendo. Eu assumo minhas posições. Estamos dentro da legalidade”.
Questionado se seria ético contratar a mulher e a mãe, respondeu de forma que chegou à vulgaridade, lembrando o candidato Ciro Gomes em 2002: “Confiança é confiança. Uma dorme comigo, a outra me pariu. É mais do que justo!”.
Obs: Os trechos foram retirados do livro de minha autoria “A ética da malandragem – no submundo do Congresso Nacional”, da Geração Editorial.