Documentos classificados como “secretos” pelo Serviço Nacional de Informação (SNI) trazem luz a um processo que o capitão Jair Bolsonaro enfrentou na Justiça Militar, em 1988. Ele foi investigado pela suposta participação em um plano para jogar bombas de efeito moral em unidades do Exército. O objetivo era pressionar o governo a dar aumento salarial aos militares. Dois anos antes, em 1986, Bolsonaro havia sido preso, por 15 dias, por ter publicado artigo na revista Veja criticando os baixos soldos dos militares.
O plano de explodir bombas foi revelado pela Veja, em 25 de outubro de 1987, na reportagem “Ordem Desunida”. Relatório do SNI diz que a reportagem “aborda a reivindicação de aumento dos militares e denuncia a existência de um clima de rebeldia em alguns setores do Exército. Dentre outros pontos, a reportagem destaca a entrevista da repórter Cássia Maria com os capitães Jair Bolsonaro e Fábio Passos da Silva, o “Xerife”.
A repórter afirma ter ouvido dos entrevistados detalhes de um plano que consistia em causar pequenas explosões de bombas na Aman [Academia Militar das Agulhas Negras] e em outras unidades do Exército, como represália ao “índice de aumento dos militares que seria anunciado pelo governo”.
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O documento do SNI, consolidado em novembro de 1989, acrescenta que “os capitães Jair Bolsonaro e Fábio da Silva negaram, em declaração de próprio punho, em 25 de outubro de 87, que tenham concedido tal entrevista. Tendo em vista o publicado na reportagem, o capitão Jair é submetido ao Conselho de Justificação, tendo sido considerado ‘não justificado’. O parecer final é de que o mesmo é culpado e que deve ser declarada a sua incompatibilidade para o oficialato e consequente perda do posto e patente”.
O Conselho de Justificação é a instância das Forças Armadas responsável por investigar, através de processo especial, a conduta disciplinar de oficiais militares. O SNI registra também que o Superior Tribunal Militar (STM), ao julgar os autos do Conselho de Justificação, em 16 de junho de 1988, declarou-o, por maioria de votos, “não culpado”.
Em entrevista ao site BuzzFeed, em novembro do ano passado, Bolsonaro defendeu a volta do SNI: “Você tem que ter um Serviço Nacional de Informações, que traga informações concretas e abasteça as autoridades competentes no Brasil, para que elas tomem providência. Pois a Abin, pelo que parece, não tenho certeza, em parte está politizada”. Questionado se esse SNI deveria ser nos moldes do criado em 1964, respondeu: “[Um] que traga informações. No período militar tinha informação”.
Trinta anos depois do histórico julgamento, Jair Messias Bolsonaro é deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro e pré-candidato a presidente da República pelo Partido Social Liberal (PSL).
“Só a explosão de algumas espoletas”
A revista Veja revelou, na edição de 28 de outubro de 1987, os bastidores da reportagem que resultou no processo contra Bolsonaro. A repórter Cassia Maria foi à Vila Militar na Zona Norte do Rio de Janeiro e conversou com dois capitães da EsAO e a mulher de um deles. Insatisfeitos com a prisão e um colega, com seus vencimentos e com a cúpula do Exército, os dois teriam revelado o plano de explodir bombas em várias unidades da Vila Miliar, da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Rezende (RJ), e em vários quartéis.
“Os contatos da repórter com os militares se baseavam num acordo de sigilo. No momento em que se falou de bombas e atentados, a manutenção de qualquer acordo de cavalheiros se tornou impossível”, relatou a revista.
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Cássia deu detalhes da reunião: “Fui recebida no apartamento 101 do prédio nº 865 da Avenida Duque de Caxias por Lígia, mulher do capitão que se identificou apenas como “Xerife”. Pouco mais tarde chegou o capitão Jair Bolsonaro”. Com a chegada de outro oficial, ela foi levada para um quarto.
“Nos poucos momentos em que ficamos ali, Lígia revelou-me alguns detalhes da operação ‘Beco sem Saída’. O plano consistia num protesto à bomba. Algumas bombas seriam detonadas nos banheiros da EsAO, sempre com a preocupação de evitar que houvesse feridos. Simultaneamente, haveria explosões na Aman e em outras unidades do Exército”, relatou a repórter.
De volta à sala, a conversa teria girado em torno de críticas ao ministro do Exército, general Leônidas Pires. “Perguntei, então, se pretendiam realizar alguma operação maior nos quartéis. ‘Só a explosão de algumas espoletas’, brincou Bolsonaro. Depois, sérios, confirmaram a operação que Lígia chamara de ‘Beco sem Saída’.
Sem o menor constrangimento, o capitão Bolsonaro deu uma detalhada explicação sobre como construir uma bomba-relógio. O explosivo seria o trinitrotolueno, o TNT, a popular dinamite. O plano dos oficiais foi feito para que não houvesse vítimas”.
Durante a conversa, que durou duas horas, Bolsonaro relatou suas relações com o general Newton Cruz. Eles falavam frequentemente por telefone e Bolsonaro esperava que ele promovesse um encontro dele com o general no mês seguinte.
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A reportagem enviou cópia de alguns trechos dos documentos do SNI e solicitou uma entrevista com o deputado Jair Bolsonaro para que ele comentasse esses fatos. A sua assessoria respondeu: “Ele não vai se pronunciar”.
“Prontuário” com 83 registros no SNI
O relatório do SNI sobre as atividades de Bolsonaro, chamado de “Prontuário” (imagem abaixo), teve início após a publicação do seu artigo na Veja em 3 de setembro de 1986. Além de decisões internas no Exército relativas ao processo contra Bolsonaro, há um longo acompanhamento da campanha eleitoral do capitão para vereador do Rio de Janeiro, articulações por aumento salarial para os militares, encontros com autoridades militares, reuniões e até churrasco de aniversário na sua casa, com o nome dos presentes.
Segue, abaixo, em ordem cronológica, os principais fatos relatados:
2 de setembro de 1986 – Boletim Interno do Comando da Brigada de Paraquedista registra: “Punido por ter elaborado e feito publicar, em revista semanal de tiragem nacional, sem conhecimento e autorização de seus superiores, artigo em que tece comentários sobre a política de remuneração do pessoal civil e militar da União; ter abordado aspectos da política econômico-financeira do governo, fora da sua espera de atribuição e sem possuir um nível de conhecimento global que lhe facultasse a correta análise; por ter sido indiscreto na abordagem de assunto de caráter oficial, comprometendo a disciplina; por ter censurado a política governamental; por ter ferido a ética, gerando clima de inquietação no âmbito da OM e da Força e por ter contribuído para prejudicar o excelente conceito da tropa paraquedista no âmbito do Exército e da Nação, fica preso por 15 dias”.
Em 26 de outubro de 1987 – Telex do Comando Militar do Leste: “Ao tomar conhecimento da reportagem da revista Veja, Bolsonaro declarou ao coronel Adilson do Amaral que considera uma fantasia a matéria publicada. Declara que conhece a repórter Kassia, tendo-a visto algumas vezes na Vila Militar/Rio de Janeiro, sendo por ela abordado somente uma vez, ocasião em que orientou que procurasse o general comandante da EsAO [Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais] e o entrevistasse a respeito dos oficiais. Nega qualquer participação em reunião na casa do capitão Fábio com a repórter Kássia. Acredita que o principal objetivo da matéria seja o de procurar vender a revista, ‘doa a quem doer’. Disse que desconhece qualquer movimento por aumento salarial supostamente existente na escola”.
16 de novembro de 87 – Estudo do Comando do Exército: “Considera que as averiguações realizadas não conseguiram elidir a dúvida que paira sobre a conduta do nominado, embora não existam elementos para a abertura de IPM. Sugere a submissão do nominado ao Conselho de Justificação”.
18 de novembro de 87 – Telex da GmEX: “Informa que o senhor ministro do Exército determinou que o nominado seja submetido ao Conselho de Justificação”.
29 de dezembro de 87 – SNI reproduz informação do Jornal do Brasil: “A jornalista Cassia Maria, autora da reportagem denunciando a existência de um complô de capitães que pretendia explodir bombas em quartéis do Exército, disse ontem, em depoimento ao Conselho de Justificação ter recebido uma ameaça de morte do referido capitão momentos antes de iniciar seu depoimento”.
6 de abril de 1988 – Boletim da Secretaria Geral do Exército: “Publica que o exmo. sr. ministro do Exército, considerando que: o justificante, em suas razões de defesa, não conseguiu ilidir as acusações que lhe foram feitas; o Conselho de Justificação, por unanimidade, julgou-o culpado; resolve, concordar com o parecer do Conselho de Justificação e considerar o nominado não justificado”.
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19 de abril de 88 – Relatório do procurador-geral da Justiça Militar: “Analisa a preliminar arguída pelo justificante – ‘a anulação do Conselho de Justificação por cerceamento do direito de defesa’, argumentada em ‘não ter sido permitida a presença do advogado de defesa em nenhuma das sessões do conselho até 28 de dezembro de 87”. ‘Daí em diante, dos inúmeros depoimentos que se sucederam, consta a presença do advogado do justificante. Emite o parecer de que o nominado é culpado e que seja declarada a sua incompatibilidade com o oficialato e, consequentemente, a perda do posto e patente”.
24 de junho de 88 – Informe do Centro de Informação do Exército: “O STM reuniu-se para julgar os autos do Conselho de Justificação a que foi submetido o nominado. Durante a apresentação da defesa, a advogada Elizabeth Martins Souto pediu a anulação do Conselho, sendo rejeitada por unanimidade. O tribunal, ao analisar o mérito dos autos, julgou, por maioria de votos (9×4) o nominado não culpado”.
12 de julho de 88 – Informe da EsAO: “Há cerca de um mês o nominado entrevistou-se com o ex-presidente João Batista de Oliveira Figueiredo”.
29 de julho de 88 – Telex do Comando Militar do Leste: “Tem dito a militares de seu relacionamento que tem pronto um processo criminal, por calúnia, contra o exmo. Sr. Ministro do Exército. Daria entrada no Tribunal Federal”.
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