As pensões das filhas solteiras de servidores civis e militares que são maiores de idade custam R$ 9 bilhões por ano aos cofres públicos. São R$ 90 bilhões no período de 10 anos – cerca de 10% da economia que será gerada pela reforma da Previdência recém-aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados. A Nova Previdência promete cortar privilégios de funcionários públicos, mas não mexe com essas pensionistas. E nem poderia.
O artigo quinto da Constituição de 1988, no seu inciso XXXVI, diz que “a lei não prejudicará o direito adquirido”, o que assegura a manutenção das pensões já concedidas, inclusiva para filhas solteiras. Há quem defenda que uma emenda constitucional poderia alterar essa norma, mas o artigo 60 da Constituição determina que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais – justamente o que está previsto no artigo quinto.
A pensão das filhas solteiras de servidores públicos civis foi regulamentada pela Lei 3.373/1958. Era um tempo em que as mulheres tinham menor inserção do mercado de trabalho, sendo portanto mais dependentes de pais ou maridos. A Lei 8.112/1990 proibiu a concessão de novas pensões, adequando a legislação a outro princípio constitucional previsto no artigo quinto: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Mas quem já recebia a pensão como filha solteira continuou recebendo.
Quanto custa o direito adquirido
Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) concluída no final de 2016 apurou a existência de 52 mil filhas solteiras no serviço público civil. As pensões custavam R$ 2,2 bilhões por ano em abril de 2014. Em valores atualizados pela inflação são R$ 3 bilhões.
As pensões de filhas maiores de militares foram regulamentadas pela Lei 3.765/1960 e alteradas pela MP 2.215/2001, que proibiu a concessão de novos benefícios. Mas os militares que estavam na carreira e aceitaram pagar 1,5% a mais de contribuição continuam deixando pensões para filhas maiores. Com uma vantagem extra: elas podem ser casadas, divorciadas ou em união estável.
Levantamento feito pelo blog em 2018, com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, mostrou que as 87 mil filhas maiores das Forças Armadas custam R$ 6 bilhões aos cofres públicos por ano. Cerca de 45 mil dessas pensionistas são idosas – com mais de 60 anos. Sete mil delas têm mais de 80 anos. Trinta e sete são centenárias. A maior parte está no Exército – são 66 mil pensionistas.
Os militares costumam afirmar que bancam as pensões dos seus dependentes com a contribuição de 9% da sua remuneração. Mas dados oficiais do Exército mostram que a parte destinada às filhas maiores (1,5%) cobre apenas 9,3% das despesas com essas pensões. As contribuições ficam em R$ 150 milhões por ano, enquanto o gasto com 23,7 mil pensões de filhas maiores atinge R$ 1,6 bilhão.
O privilégio foi usufruído pelo general Emílio Garrastazu Médici, que presidiu o país com mão de ferro de 1969 a 1974, durante a ditadura militar. Aos 79 anos, ele adotou a neta Cláudia Candal um ano e oito meses antes de morrer para deixar a pensão de filha solteira. Cláudia tinha 21 anos quando foi adotada, em 1984, não residia com o avô e tinha pai vivo com emprego de alta remuneração.
As fabulosas pensões das filhas solteiras do Congresso
As pensões de maior valor são pagas pelo Congresso. Um grupo de 56 filhas solteiras de servidores do Congresso Nacional tem renda mensal maior do que deputados e senadores, que recebem salário de R$ 33,7 mil. Quarenta e três delas atingem o teto remuneratório constitucional – R$ 39,3 mil, igual ao salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). As 390 pensionistas custam R$ 90 milhões por ano ao contribuinte.
A maior remuneração bruta na Câmara dos Deputados é de Raissa Guerra, de 48 anos, filha de um ex-servidor. A renda de R$ 54,7 mil sofre o abate-teto de R$ 15,4 mil. Ela recebe a pensão desde 1982, mas passou a receber o valor integral somente em janeiro deste ano.
O Poder Judiciário também não poupa recursos com as suas filhas solteiras. Três pensionistas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) recebem o mesmo salário dos ministros do tribunal – R$ 37,3 mil. A mais idosa, com 79 anos, Ana Maria Coelho, recebe duas pensões no valor de R$ 61,7 mil.
Filha do ex-ministro Lopo de Carvalho Coelho, ela acumula pensões do TST e do Montepio Civil da União, um plano de previdência fechado que beneficia dependentes de servidores civis, de juízes federais e ministros de tribunais superiores. As 29 pensionistas do TST custam R$ 5,4 milhões por ano aos cofres públicos.
No Supremo Tribunal Federal (STF), duas filhas de ministros recebem o teto constitucional. Filha do ex-ministro José Geraldo Rodrigues de Alckmin, morto em 1978, a arquiteta Maria Lúcia Rangel de Alckmin, de 74 anos, recebe R$ 39,3 mil de pensão na condição de “filha solteira maior”. Maria Ayla Furtado de Vasconcelos, filha do ex-ministro Abner de Vasconcellos, morto de 1972, recebe pensão no mesmo valor.
Um privilégio de origem secular
As pensões para filhas solteiras tiveram origem nas Forças Armadas, quando o Brasil se separou de Portugal. Em 1823, o Governo Imperial concedeu às viúvas ou órfãs de oficiais do Exército mortos nas lutas pela Independência do Brasil o benefício de meio soldo de seus maridos ou pais. Em 1847, o governo estabeleceu que as filhas solteiras do Exército continuariam a receber o meio soldo mesmo depois de casadas.
No ano de 1902, a República estendeu, definitivamente, às filhas casadas o direito à percepção do meio soldo e ao montepio da Marinha. A situação ficou ainda mais definida em 1946, quando um decreto assegurou a pensão às filhas solteiras, viúvas, casadas ou desquitadas. A Lei nº 3.765/60 unificou todos os benefícios em apenas um, conhecido como pensão militar, e consolidou a expressão “filhos de qualquer condição”, que beneficia filhas pensionistas sem qualquer restrição.
Mas a primeira menção a “filhas solteiras” remonta ao final do século 18, no Brasil Colônia. Em 1795, foi aprovado o Plano de Montepio dos Oficiais da Armada Real Portuguesa – precursora da Marinha. Os oficiais contribuíam com um dia de soldo para garantir uma renda às viúvas e às filhas “donzelas ou viúvas”, que dividiriam igualmente a pensão, mesmo que casassem após a concessão. A pensão militar, portanto, antecede à criação do sistema previdenciário no Brasil, em 1923.
Os dados históricos estão registrados no trabalho de conclusão de curso apresentado por Gilson Gomes de Oliveira na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.