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Despesas com pessoal chegando aos 90% do orçamento, escassez de recursos, supersalários e servidores com remuneração acima do teto remuneratório graças a centenas de decisões judiciais. Esse é o quadro das universidades brasileiras. Mas esse cenário pode ficar ainda mais complicado com a Portaria 4.975/2021 do Ministério da Fazenda, que regulamenta o “teto duplex”, ou seja, a aplicação do abate-teto constitucional sobre cada remuneração no caso de acúmulo de renda.
A Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) foi questionada pelo blog sobre situação do professor José Geraldo Mill, que tem renda bruta de R$ 54 mil. Ele sofre abate-teto de R$ 3,4 mil e fica com renda acima do teto: R$ 39,3 mil – valor que corresponde ao salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
A UFES informou que o professor Mill possui vínculo como professor ativo da universidade e também como professor aposentado (a lei permite a acumulação de dois cargos de professor), além de exercer cargo em comissão na Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). “Desde 2020, os valores acima do teto foram devolvidos ao servidor, por decisão judicial”, disse a universidade.
Mas destacou um fato novo: “Porém, conforme Portaria 4.975, de 29 de abril de 2021, que dispõe sobre a nova sistemática de cálculo do teto constitucional, quando há acúmulo de cargos públicos ou de cargo e provento de aposentadoria, cada remuneração deve ser analisada separadamente”. Em resumo, não é mais necessária a ação judicial.
Professores, médicos e... militares
Em fevereiro do ano passado, como mostrou reportagem do blog, 537 ações judiciais mantinham servidores e dependentes com remuneração acima do teto. Só na Universidade Federal do Ceará (UFC) eram 71 casos, sendo 57 servidores ativos e aposentados e 14 pensionistas. Sim, pensionistas também têm renda acima do teto constitucional. A UFES informa que seis dos seus servidores ativos e cinco inativos têm renda bruta acima do teto constitucional atualmente. Mas o número de beneficiados pelas decisões judiciais é muito maior porque muitas das ações são coletivas.
A Portaria 4.975 dispõe sobre o limite remuneratório previsto no art. 37 da Constituição federal e sobre a remuneração ou pensão recebidas cumulativamente por servidor, militar, aposentado ou pensionista. Inicialmente, a portaria regulamenta a aplicação do teto nas hipóteses de acumulação de cargos admitidas pela Constituição. Estabelece que, no caso de professores e profissionais de saúde, o teto incide isoladamente sobre cada um dos vínculos.
Em seguida, no art. 4º, a portaria inova. Diz que o limite remuneratório incidirá isoladamente em relação a cada um dos vínculos nas seguintes situações: acumulação entre vínculo de aposentado ou militar inativo com cargo em comissão ou cargo eletivo; e acumulação entre vínculo de aposentado ou militar na inatividade com cargo ou emprego público. Esse artigo beneficiou a cúpula militar que ocupa cargos de alto escalão no governo Bolsonaro.
O motivo dos supersalários
Segundo os números do Portal da Transparência da Presidência da República, o maior salário entre os servidores das universidades federais chega a R$ 64,8 mil. Cresus Depes de Gouvea tem duas rendas como professor e odontólogo na Universidade Federal Fluminense (UFF), ambos como aposentado, mais um cargo de direção como pró-reitor. Ricardo Erthal Santelli tem empregos como professor aposentado na UFF e ativo na UFRJ, com renda total de R$ 55 mil. O abate-teto de R$ 15,7 mil é devolvido.
Virgínia Maria Coser recebeu R$ 53,6 mil em junho da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Ela recebe como aposentada da universidade e atua como médica no hospital universitário, onde tem uma função gratificada. Ewerton Nunes Morais tem renda de R$ 51,5 mil como professor ativo e médico aposentado da UFSM. Tem abate-teto de R$ 12,2 mil, mas recebe o mesmo valor de volta como “outras remunerações eventuais”.
Na mesma universidade, Marinez Casarotto de Oliveira tem renda de R$ 49 mil como médica aposentada da UFSM e médica ativa em exercício no hospital universitário, onde ocupa um cargo de confiança.
A universidade afirmou ao blog que a renda dos dois “é composta por salário de cargo ativo e de proventos de aposentadoria, com cargos de médico e docente”. Acrescentou que “a rubrica judicial observada no Portal da Transparência trata-se da reversão do desconto do abate-teto decorrente de decisão judicial”. Informou ainda que 32 servidores têm renda bruta acima do teto constitucional na universidade.
Abate-teto sobre cada vínculo
Marta Bustos Romero recebe R$ 48,3 mil como como professora aposentada e ativa da Universidade de Brasília (UnB). O abate-teto de R$ 9 mil é devolvido como “remuneração eventual”. Carlos de Campos Martins também é professor ativo e aposentado da UnB, com renda total de R$ 47,1 mil. O abate-teto de R$ 7,8 mil é devolvido.
A UnB afirmou ao blog que os servidores percebem renda superior ao teto constitucional em virtude de decisão judicial individual. “A incidência de abate-teto é aplicada isoladamente em cada vínculo. Ressalta-se que nesses casos o desconto de abate teto continua vigente nos contracheques dos servidores. No entanto, em cumprimento à ação judicial, é registrado rendimento de igual valor ao desconto”.
A UnB foi questionada sobre o impacto da Portaria 4.975 no seu quadro de servidores e se medida vai acabar com a aplicação do abate-teto sobre a soma das remunerações. A universidade respondeu que atende a todos os normativos relacionados a pessoal emanados pelo Ministério da Educação: “Portanto, seguiremos a portaria”.
Sérgio Coelho Gomes tem renda de R$ 55,8 mil como médico ativo e aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em junho, teve abate-teto de R$ 16,5 mil e devolução de R$ 21 mil. José Monteiro Sad Gomes tem dois empregos como médico ativo da UFRJ, com contratos de 40 horas e 20 horas semanais e renda de R$ 50 mil. Vera Monteiro da Silva recebe R$ 49,7 mil como medida ativa e aposentada da UFRJ. O seu abate-teto de R$ 10,4 mil é devolvido.
A universidade informa que há decisão judicial para devolução do abate-teto e que ambas as remunerações são consistentes com cargo, carga horária e titulação de acordo com a tabela do Plano de Carreira dos Servidores.
A Universidade Federal do Ceará (UFC) afirmou acreditar que não vai acabar a aplicação do abate-teto sobre a soma das remunerações, uma vez que a referida portaria prevê a aplicação do redutor constitucional em várias situações. Uma delas seria no caso de servidor civil ou militar da ativa ocupar função de confiança. A segunda seria no caso de acumulação de pensão com cargo efetivo ou comissionado. Na terceira situação – acúmulo de pensão com mais de um cargo, emprego ou graduação militar – o limite remuneratório incidirá sobre a soma da pensão com a remuneração de vínculo mais antigo.
Quanto custam as universidades
As 22 maiores universidades federais gastam 85% do seu orçamento com pessoal. São R$ 28,5 bilhões em despesas com servidores e seus pensionistas num orçamento total de R$ 33,2 bilhões. Pelo menos 10 delas se aproximam dos 90%. As maiores despesas com pessoal ocorrem nas universidades federais de Goiás (90,3%), da Paraíba (90,2%) e do Rio Grande do Sul (89%) — veja os gastos das maiores universidades.
Mas os maiores orçamentos são da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com um total de R$ 3,4 bilhões, sendo R$ 2,6 bilhões com pessoal; e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com orçamento de R$ 2,2 bilhões, sendo R$ 1,9 bilhão com pessoal.
A reportagem questionou as maiores universidades sobre o motivo dessa concentração de despesas em pessoal, em percentual muito acima da média dos demais órgãos públicos federais, o que naturalmente reduz o orçamento disponível para pesquisas, por exemplo.
A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que gasta 88,9% do seu orçamento com pessoal, afirmou ao blog que ao longo dos últimos anos, “como o orçamento de funcionamento não vem sendo corrigido, pelo contrário, vem sofrendo reduções anualmente, o que faz com que essa relação folha de pessoa/total orçamento aumente anualmente”.
A UFSM destaca que a folha de pessoal possui crescimento vegetativo, depende da expectativa de vida e da carreira de cada servidor da instituição, “sem que haja alguma forma gerencial de minimizar os impactos no seu crescimento. Antes, deve ser tratado como um investimento de Estado, como ocorre nos países desenvolvidos”.
A universidade salienta que os servidores aposentados, que contribuíram com 14% do seu salário para a previdência pública e continuam contribuindo após a aposentadoria, constam no orçamento de uma universidade federal, “o que é uma distorção, pois ficam na folha de inativos da instituição, elevando essa relação despesa de pessoal/orçamento total”.]
Mas a UFSM afirma que “o grande ativo de uma instituição federal de ensino são os recursos humanos e o conhecimento (ativo intangível), pois a educação é a grande missão da mesma. Portanto, não há como comparar a relação folha de pessoal de uma instituição de ensino superior com um outro órgão público”.
“É uma escolha de governo”, diz UFPEL
A Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) afirmou ao blog que a comparação com outros órgãos públicos federais não é adequada, pelas diferenças entre suas atividades fins. “O principal motivo da concentração de despesas de pessoal nas universidades é que a atividade fim das mesmas, que é a educação, é desenvolvida pelas pessoas. Os servidores docentes, em sua maioria, são doutores em suas áreas de conhecimento, o que se reflete em uma remuneração mais elevada do que a de outras carreiras”.
Mas a UFPEL apresentou outros motivos dessa concentração de gastos em pessoal: “Para as universidades, o comprometimento do governo federal se resume ao mínimo necessário para o cumprimento da lei, a qual garante o pagamento de salários, aposentadorias, pensões, etc. O aumento progressivo do percentual de despesas de pessoal se deve à redução progressiva do orçamento de custeio e de investimento destinado às universidades”.
“Podemos considerar que o principal motivo para a concentração de despesas em pessoal nas universidades é uma escolha de governo, pois o mesmo é o único responsável pela definição do orçamento para as demais despesas das universidades, como por exemplo, em pesquisas, às quais poderiam ser incentivadas por um aumento no orçamento”, concluiu a universidade de Pelotas.