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Desde que foi apresentado o pedido de criação da CPI da Covid, no início de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro fez 40 viagens pelo país. Só as 25 realizadas até o final de abril já custaram R$ 4 milhões ao contribuinte. Nos eventos oficiais, onde gerou aglomeração, o presidente respondeu às críticas feitas pelos integrantes da CPI, sempre atacando o isolamento social, os lockdowns e defendendo o uso da cloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada.
Bolsonaro criticou aposta em vacinas e reafirmou que tem o apoio dos militares. "Tenho as Forças Armadas ao meu lado, sou o chefe supremo delas. Jamais elas irão às ruas para mantê-los em casa. Poderão sim, um dia, ir às ruas para garantir a sua liberdade”, disse em São Mateus (ES), em 11 de junho. Por onde andou, abraçou admiradores e várias crianças, inclusive abaixando a máscara de proteção de uma delas. Entre tantos devaneios, autodeclarou-se “imorrível” e “imbrochável”.
Em abril, torrou R$ 1,4 milhão nas 12 viagens realizadas. Em fevereiro, mês em que foi apresentado o pedido de criação da CPI, os gastos somaram R$ 2,2 milhões. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Enquanto se defendia das acusações de omissões, inoperância e erros na estratégia de combate à pandemia, além de denúncias de corrupção no Ministério da Saúde, o presidente inaugurou e visitou obras, participou de solenidades militares e cultos evangélicos e até tirou folga em São Francisco do Sul (SC) no Carnaval, onde gastou R$ 700 mil. O presidente andou de jet ski na praia, posou para fotos e gerou aglomeração (veja abaixo o custo de cada viagem).
Em 13 de maio, após duas semanas de funcionamento da CPI, Bolsonaro já previa problemas: “Não vai ser fácil porque sempre tem alguém picareta, vagabundo, querendo atrapalhar o trabalho daqueles que produzem. Se Jesus teve um traidor, temos um vagabundo inquirindo pessoas de bem em nosso país. É um crime o que vem acontecendo com essa CPI”, afirmou, em cerimônia de entrega de casas populares em Maceió. Ele se referia ao senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI.
Cloroquina “não mata ninguém”
Em vários eventos, Bolsonaro recomendou produtos e tratamentos desautorizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela Agência de Vigilância Sanitária (Anfiva) e pelo próprio Ministério da Saúde. Há duas semanas, em 18 de junho, na liberação de uma obra na Transamazônica, voltou a defender o uso da cloroquina e do tratamento precoce.
“Recomendo àqueles que porventura tenham problemas com a Covid, procura seu médico para o tratamento precoce. Eu, lá atrás, tomei hidroxicloroquina. Assim como muitos tomaram também ivermectina [um vermífugo que mata vermes ou parasitas como lombriga, sarna e piolhos]. Isso não mata ninguém. (...) Ninguém morreu por causa disso, muito pelo contrário, salva vidas”, afirmou o presidente em Novo Repartimento (PA).
Uma semana antes, em São Mateus (ES), onde entregou casas populares, Bolsonaro já havia comentado: “Fui acometido do vírus e tomei a hidroxicloroquina. Talvez eu tenha sido o único chefe de Estado que procurou o remédio para esse mal. Não vou esmorecer. Não sou cabeça dura. Sou perseverante. Eu sou três is. Imorrível, imbrochável e incomível”.
“Só troquei acórdão por tabela”
Bolsonaro criou mais uma confusão no dia 7 de junho, ao afirmar que metade das mortes por Covid-19 não seriam causadas pela doença, consequência de supernotificação, segundo uma suposta decisão do Tribunal de Contas da União (TCU). Dois dias depois, ele reconheceu que estava errado: “O TCU está certo. Eu errei quando falei tabela. O certo é acordão". Em discurso no Culto Interdenominacional das Igrejas de Anápolis (GO), também no dia 9, ele voltou a citar o documento elaborado por um auditor de maneira informal.
“Eu tive acesso a dois acórdãos do TCU. Dizia o tribunal que a metodologia para enviar recursos aos estados, levando-se em conta a incidência do Covid, poderia suscitar a prática não desejável de um superdimensionamento da quantidade de pessoas infectadas e mortas, para que aquele estado angariasse mais recursos. Trabalhei em cima daquilo e apareceu uma tabela. Eu só me equivoquei no dia porque eu troquei acórdão por tabela, mas continua valendo a mesma coisa. Se nós retirarmos as possíveis fraudes, teremos em 2020 o nosso país como aquele com menor número de mortes por milhão de habitantes por causa da Covid”, vibrou o presidente.
E retomou o tema cloroquina: “Aí vem o importante: que milagre é esse? O tratamento precoce. Quem aqui tomou a hidroxicloroquina, levanta o braço por favor”. Diante do apoio, comentou: “Querem prova maior do que isso? Eu tomei a hidroxicloroquina, outros tomaram ivermectina, outros estados mais graves, alguns poucos, estão tomando”, afirmou, numa linguagem confusa.
Receitas de cura e dúvidas sobre vacina
Nesses eventos país afora, cercado de aliados, Bolsonaro fica muito à vontade para espalhar receitas de cura. “Estive visitando os Tukanos e os Yanomâmis, na região de São Gabriel da Cachoeira, e perguntei se os índios haviam sido acometidos de Covid. Quase todo mundo sim. E perguntei quantos morreram. Responderam: nenhum. Tomaram o quê? Citaram três nomes de chá de casca de árvores. Ah, não tem comprovação científica! E eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está experimental. Nunca vi ninguém morrer por tomar hidroxicloroquina”.
Nos discursos para aliados, Bolsonaro infla os números sobre vacinas: “O nosso Brasil, tirando aqueles países que produzem a vacina, é o que mais vacina em números absolutos em todo o mundo. Isso é um trabalho que vem lá de trás, do general Pazuello à frente do Ministério da Saúde, que fez o dever de casa lá atrás”, afirmou em Belém, no dia 23 de abril, durante a entrega de cestas de alimentos.
Em cerimônia na Itaipu Binacional, em Foz do Iguaçu, dia 7 de abril, o presidente levantou dúvidas sobre o preço das vacinas. “Tenho certeza que brevemente será apresentado ao mundo um remédio para a cura da Covid, porque a gente fica assustado, prezada imprensa brasileira, tanta eficiência, tanto foco apenas na vacina de dez, vinte dólares a unidade. Queremos a vacina? Em passando pela Anvisa sim, mas também buscar o remédio para sua cura e não demonizar qualquer outro medicamento”.
Aglomeração em todo lugar
O discurso mais recorrente de Bolsonaro é contra o isolamento social, em defesa do "direito de ir e vir". Na inauguração de um trecho da Ferrovia Norte-Sul, em São Simão (GO), dia 4 de abril, pediu a governadores e prefeitos: “Não fiquem me acusando de fazer aglomeração. Aqui tem uma aglomeração. Em todo lugar tem. Vamos combater um vírus, mas não de forma ignorante, burra, suicida. Até quando vamos ficar dentro de casa? Até quando vai se fechar tudo? Ninguém aguenta mais isso. Por que essa frescura de fechar o comércio? Não deu certo no passado”.
Já em 28 de janeiro, na inauguração de uma ponte em Propriá (SE), ele dizia: “A política de fechar tudo e ficar em casa, não deu certo. O povo brasileiro é forte, o povo brasileiro não tem medo do perigo. O isolamento, o lockdown, o confinamento, nos leva para a miséria”.
Na entrega de títulos de propriedade, em Terenos (MS), em 14 de maio, Bolsonaro provocou a imprensa: “Não adianta a imprensa ficar de palhaçada aí, estava sem máscara, juntou aglomeração, foi na casa mais humildes. Eu continuo indo na casa de todo mundo. Até quando isso vai prevalecer sem qualquer comprovação científica? Temos que enfrentar a realidade, lamento os mortos, mas temos que enfrentar esses problemas”.
Bolsonaro também participou de eventos fora da agenda oficial, como as motociatas em São Paulo, Rio de Janeiro e Chapecó, sempre reunindo dezenas de milhares de pessoas, sem as devidas precauções sanitárias. Teve ainda uma manifestação de apoio ao presidente na Esplanada dos Ministérios, organizada por produtores rurais do Movimento Brasil Verde e Amarelo, o Agro e o Povo. Finalmente, fez paradas não programadas em povoados durante as visitas a obras.
O pedido para a criação da CPI da Covid foi apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP) no dia 4 de fevereiro. Mas o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-PB), sentou em cima do processo. Após dois meses, em 8 de abril, o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a criação da CPI. No dia 13, Pacheco criou a comissão, que foi instalada no dia 27 de abril.