Preso pela polícia espanhola quanto transportava 39 quilos de cocaína em avião da comitiva presidencial, o sargento Manoel Silva Rodrigues deverá pegar pena elevada, mas deixará pensão para a família. Isso será possível porque o projeto de reforma da previdência dos militares, enviado pelo governo Bolsonaro ao Congresso, mantém o pagamento de pensão à família de militar que perde o posto ou é expulso das Forças Armadas pela prática de crimes, como corrupção e tráfico de drogas.
O caso mais recente é de um major-aviador que foi surpreendido na Base Aérea de Recife (PE) transportando 33 quilos de cocaína num avião Hércules da Aeronáutica com destino à França. Ele foi preso em abril de 1999, mas somente no mês passado foi condenado pela Justiça e perdeu o posto. Sua família passará a receber a pensão militar normalmente, como se ele tivesse sido morto em combate e se tornado um herói de guerra. O Ministério Público Militar (MPM) estima em R$ 20 milhões o gasto anual da administração pública federal com essas pensões.
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Deverá acontecer o mesmo com a família do vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, da Marinha, condenado a 43 anos de prisão pela Justiça Federal de primeira instância do Rio de Janeiro, em 2016, por corrupção na Eletronuclear, estatal que presidia. Os investigadores estimaram na época que Othon recebeu até R$ 12 milhões em propina a partir de um esquema de desvio de dinheiro em obras da usina nuclear Angra 3.
O texto da reforma (projeto de lei 1.645/2019) diz: “o oficial da ativa, da reserva remunerada ou reformado, contribuinte obrigatório da pensão militar, que perder posto e patente, deixará aos seus beneficiários a pensão militar correspondente ao posto que possuía, com valor proporcional ao seu tempo de serviço”. O mesmo direito será assegurado a praça (suboficial, sargento, cabo) com mais de dez anos de serviço expulsa por decisão judicial.
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Este dispositivo já está em vigor (Lei 3.765/1960), mas diz que o militar deixará a pensão para seus “herdeiros”. A reforma deixa ainda mais claro esse direito, prevendo que o militar deixará a pensão militar aos seus beneficiários, correspondente ao posto que possuía.
No caso dos oficiais, a perda de posto e patente resulta da condenação a pena privativa de liberdade por tempo superior a dois anos. No caso das praças (subtenente, sargento, cabo), a condenação por tempo superior a dois anos importa sua exclusão das Forças Armadas.
Um despesa milionária
Ação civil pública apresentada pelo Ministério Público Militar propôs que a União deixasse de pagar pensões a dependentes de militares excluídos das Forças Armadas pela prática de crimes. A recomendação não foi aceita, mas o promotor militar Soel Arpini, de Bagé (RS), autor da ação, apurou com a Marinha e a Aeronáutica o número de militares estáveis excluídos até 2012 e os valores gastos com as pensões deixadas a seus dependentes.
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A Marinha informou que 132 militares deixaram pensões a 194 “herdeiros”, o que resultava num gasto anual de R$ 4,9 milhões. Na aeronáutica, 98 militares deixaram pensões para 141 “herdeiros” – uma despesa anual de R$ 5,5 milhões. O Exército não respondeu aos questionamentos. Mas, como o efetivo do Exército é mais do que o dobro da soma de Marinha e Aeronáutica, o promotor estimou em R$ 20 milhões o gasto anual com essas pensões.
A ação civil registra o caso do major-aviador Washington Vieira da Silva, preso pela Polícia Federal em Recife. Ele seguia do aeroporto do Galeão para Clermont-Ferrand, na França, com escala técnica em Las Palmas, nas Ilhas Canárias, em abril de 1999. Foi condenado a 17 anos de prisão pela Justiça Federal pela prática de tráfico internacional de drogas e associação criminosa, em novembro de 2000, mas só teve o trânsito em julgado decretado em maio de 2018.
“Herdeiros de um traficante”
Em 11 de abril deste ano, ele foi julgado pelo Superior Tribunal Militar (STM), perdendo o posto e a patente. O ministro relator Marcus Vinicius Santos afirmou que “o agir delituoso do oficial caracterizou clara violação do dever de fidelidade para com a instituição a que serve e ao próprio juramento que fez a seu País. Com efeito, ao praticar a conduta delituosa, ele infringiu não só os princípios da ética, da moralidade e da probidade, desonrando seu dever funcional e seu compromisso moral para com a Pátria”.
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O militar deixou pensão a duas herdeiras, cujos valores em 2012 alcançaram R$ 121 mil. “Assim, o Estado custeia pensão para ‘herdeiras’ de um traficante internacional. Para adjetivar tal situação, podemos defini-la como: escárnio”, diz o promotor Arpini.
O promotor cita também o caso do capitão de fragata Ronaldo Martins da Silva, condenado pela Justiça Militar a pena de 3 anos e 9 meses de prisão por ter desviado em proveito próprio recursos que ingressaram em contas bancárias para pagamentos de materiais e serviços que jamais foram realizados. A perda do posto foi decretada pelo STM. Em 2012, a Marinha pagou à cônjuge do ex-oficial um total de R$ 159 mil.
Arpini sustenta que pagar pensão a herdeiros de ex-militar expulso das Forças Armadas afronta princípios constitucionais. “O militar é excluído das Forças Armadas, mas não fica impossibilitado de trabalhar. Os dependentes são graciosamente beneficiados pela torpeza do militar que foi expulso, numa franca violação ao princípio da igualdade, pois não há justificativa ética, moral, para a concessão de tal pensão”.
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O procurador argumenta que, no Regime Geral de Previdência Social ou mesmo no Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos da União, o trabalhador ou servidor que é demitido “não obtém semelhante benefício em prol de seus dependentes”.
O princípio da moralidade também é afrontado na avaliação de Arpini. “Na verdade, isso é um prêmio à prática de ilícitos, pois, na pior das hipóteses, o militar ainda terá uma renda, ainda que de forma indireta. Tal privilégio não pode subsistir por ofensa direta à moralidade”.
Proteção à família, justifica ministério
O blog questionou o Ministério da Defesa sobre a manutenção, na proposta de reforma da Previdência, do benefício aos familiares de militares que perderam posto a patente por decisão judicial.
Segundo o ministério, “o que justifica o pagamento da pensão é a proteção à família do ex-militar que perdeu o posto ou graduação, por condenação judicial transitada em julgado. A proteção é devida à família do militar, constitucionalmente. Cabe ressaltar que o militar, ao longo da carreira, contribui para a pensão militar, que terá valor proporcional ao seu tempo de serviço, quando da perda do posto ou graduação”.
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Para a Defesa, o pagamento da pensão, em valor proporcional ao tempo de contribuição, “não poderia ser prejudicado por um fato com o qual não há nenhuma relação de causa e efeito, como é o caso da perda do posto e patente por qualquer que seja o motivo. Se assim fosse, restaria prejudicado o princípio da razoabilidade”.
O ministério também destaca: “é importante destacar, ainda, que uma outra alteração na mencionada Lei nº 3.765/60 irá impor, também à pensionista, a continuidade das contribuições para a pensão militar. Assim, a pensão será correspondente ao posto ou graduação ocupado e ao tempo de serviço do militar, equivalente ao seu tempo de contribuição”.
Levantamento feito pelo blog, a partir de dados oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, mostrou que as contribuições dos militares para financiar as pensões de seus dependentes cobrem apenas 14% do que recebem esses pensionistas. São apenas R$ 3 bilhões em contribuições para pagar benefícios no valor de R$ 21 bilhões em um ano. Os militares descontam até 9% da sua renda bruta para custear essas pensões. O percentual de 1,5% cobre especificamente as pensões das filhas maiores, que podem ser solteiras, casadas, divorciadas, viúvas ou em união estável.
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