Foto: FAB/Flickr| Foto:

Frango desfiado, carne moída ou coração em pedaços, com legumes ralados ou talo de verdura picado. Esse era o cardápio servido por taifeiros a três cachorros na casa de um oficial-general da Aeronáutica. Antes, tinham que limpar fezes e urina dos animais no quarto e no banheiro em que eles, taifeiros, trocavam roupa. Este é um exemplo das humilhações a que foram submetidos militares que trabalham como serviçais domésticos nas residências de oficiais-generais das Forças Armadas. Outro taifeiro denunciou que lavava até as calcinhas da esposa de um general.

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Os abusos, praticados ao arrepio da lei, geraram uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Militar (MPM) em Santa Maria (RS). A Justiça Federal proibiu, em 2013, em primeira instância, a utilização de taifeiros em tarefas ou eventos particulares nas residências oficiais. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) inicialmente confirmou, mas depois reformou a decisão. Como houve recurso do MPM, haverá novo julgamento no TRF-4 a qualquer momento.

O custo anual com militares que prestam ou prestaram serviços domésticos nas residências de oficiais-generais da Aeronáutica e do Exército chega a R$ 35 milhões – dinheiro pago pelo contribuinte. Existem hoje 292 taifeiros na ativa e outros 135 inativos, além de 436 pensionistas – um contingente total de 863 pessoas. A Aeronáutica conta atualmente com 288 taifeiros na ativa e 31 na reserva, além de 352 pensionistas. A Marinha afirma não possuir quadro de taifeiros. No Exército, o quadro está em extinção, com apenas quatro na ativa –, mas é preciso pagar a aposentadoria de 104 inativos e 84 pensionistas.

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No processo em primeira instância, o depoimento mais completo foi feito pelo sargento da aeronáutica Victor Hugo Briones, no Rio de Janeiro. Em 30 de julho de 2012, ele afirmou que, em muitas ocasiões, os taifeiros desempenham tarefas para “servir aos caprichos e proporcionar bem-estar aos familiares e amigos do oficial ou ainda aos amigos dos familiares do oficial”. Naquele ano, a Aeronáutica tinha 702 taifeiros na ativa.

Citou o exemplo de um militar que teve problemas porque questionou ao brigadeiro o fato de ter que levar uma empregada doméstica para fazer faxina numa residência de praia, localizada em outro município, no veículo particular do próprio taifeiro.

Rifas, bingos e jantares pela madrugada

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Em novo depoimento, em abril de 2013, Victor Hugo informou que trabalhou em residências por aproximadamente dois anos. Desempenhava todo o serviço doméstico da casa, inclusive “eventos promovidos pelo oficial e sua esposa, tais como rifas”. Isso teria ocorrido na residência de um major-brigadeiro, onde permaneceu um ano e meio. Em seguida, na casa de um tenente-brigadeiro, durante quatro meses, recebia ordens da esposa do oficial-general.

Perguntado pela juíza sobre suas atividades normais, disse que, além das atividades domésticas, desempenhava outras como idas ao mercado. “Algumas vezes, dirigia o carro da família para recolher pessoas familiares e hóspedes no aeroporto. Também era solicitado para tomar conta de idosos, crianças e animais domésticos”, registra o depoimento.

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Na decisão em primeira instância, a juíza federal Gianni Cassol Konzen citou relatos de Victor Hugo considerados contundentes. “Eu e o soldado lavávamos os carros da família. O da filha do general era um Renault Clio; e da esposa um New Civic. Além disso, lavei banheiro e limpei a casa. Eu e o soldado, por várias vezes, saímos às 3h da manhã da residência do general, depois de preparar jantar para seus amigos íntimos, ou amigos da pós-graduação da filha do general”.

Ele relatou outros serviços extras: “Algumas vezes, tínhamos que preparar o café da manhã da família do general ou para amigos do general e de sua esposa quando se hospedavam em sua casa. Inúmeras vezes, saímos depois do horário do expediente para organizar eventos como bingo para a esposa desse general, juntamente com as esposas de outros generais e de oficiais superiores”.

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A maior humilhação

O taifeiro contou, então, o maior abuso sofrido: “nessa residência, passei a maior humilhação desde que ingressei na FAB. Fui trabalhar mais uma vez como cozinheiro (na teoria). Primeiro, ao chegar, tínhamos que limpar as fezes e urina dos cachorros deixados no quarto e no banheiro em que trocávamos roupa. Em seguida, recebíamos orientação da esposa do oficial-general sobre qual tarefa deveríamos cumprir. Sempre, a minha primeira tarefa era lavar louça. A quantidade de louça era elevada para uma casa onde só moravam três pessoas, algumas vezes quatro, quando a namorada do filho do general ficava na casa”.

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Ele prosseguiu o relato: “Após lavar a louça, praticamente todos os dias, preparava a mistura, colocada por mim ou pelo sargento De Paula, para os três cachorros – Baruk, Vanile e Speedy – comerem no horário do almoço. Essa mistura consistia em pedaços de frango desfiado, carne moída ou coração em pedaços, com algum legume ralado ou talo de verdura picado”.

A juíza Gianni Konzen comentou o depoimento: “do relato acima, emerge com meridiana clareza que os taifeiros são usados para atividades estranhas às suas atribuições, algumas, inclusive, trazem forte carga de menosprezo à figura do militar”.

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“Nós é que temos que não querer vocês”

Na ação movida pelo MPM, o relato de outra testemunha demonstra a transferência de autoridade à esposa do general. Em representação criminal aberta em Bagé, Maribel Jacinto, mulher do taifeiro Jarbas Pinheiro Jacinto, afirmou à Procuradoria da República no Rio Grande do Sul que o marido estava sendo perseguido simplesmente por ter pedido transferência da residência de um general para o rancho (cozinha do quartel).

Jarbas foi punido com oito dias de detenção por “ter faltado com a verdade ao afirmar que nunca disse que não queria cozinhar na carreira militar”. Jarbas solicitou a troca de funções à esposa do general. Segundo relato do taifeiro Eloci, ela teria afirmado: “Mas como ele quer sair da residência? Não é vocês que têm que querer sair daqui, é nós que temos que não querer mais vocês”.

Lavando calcinhas e cuecas

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A juíza federal acrescentou que “corroboram tais informações relevantes reportagens veiculadas em jornais de expressão nacional”. Numa delas, o jornal Correio Braziliense trouxe o relato de um grupo de taifeiros de Brasília que denunciou, em 2008, situações de constrangimento, humilhações e abusos que teriam sofrido em residências de generais do Exército.

Embora fossem cozinheiros ou copeiros, eles executavam tarefas como lavar o chão e vasos sanitários, fazer compras em supermercado, trocar roupa de cama e lavar até as calcinhas das mulheres dos generais. Todos eles trabalharam na quadra 102 Norte, blocos G e H, onde estão concentrados os apartamentos funcionais dos generais. Eles mostraram fotografias em que aparecem em tarefas como passar roupa e limpar vasos sanitários.

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“As tarefas são limpar banheiro de general, lavar roupa. A roupa do general, da madame, dos filhos que moram com eles, com netos que moram. Taifeiro lava e passa. Outra coisa: elas não arrumam cama. Quem arruma são os taifeiros. Raramente os generais têm alguma empregada doméstica. Também vamos ao supermercado, empurrar carrinho da madame”, contou um taifeiro.

Outro taifeiro relatou um fato que considerou humilhante. “Sou o copeiro, mas fazia o serviço pesado da casa, limpeza das residências, a arrumação de móveis. Lavava cinco banheiros. Mas o que mais me chocou foi uma situação humilhante. Uma madame pegou as calcinhas dela, me colocou nas mãos e disse que era para eu lavar. Eu tirava do banheiro as calcinhas dela, as cuecas do general. Tinha coleção de cuecas, de calcinhas, pretas, amarelas, brancas, de renda”.

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O Centro de Comunicação Social manifestou-se, na época, sobre as denúncias feitas ao Correio Braziliense. “Sobre alegações anônimas que seriam de militares ou não, a respeito de qualquer assunto, não se pode atribuir credibilidade e se fazer juízo de valores”. O Cecomsex destacou, porém, que os taifeiros, como todos os militares, “estão sujeitos à base legal da instituição, que regula as obrigações e deveres dos militares. Assim, alegações e afirmações como as citadas em sua mensagem devem ser formalizadas e encaminhadas segundo o processo administrativo ou judicial competente”.

A decisão da juíza

Em outubro de 2013, ela conclui: “a presente demanda tem como cerne a utilização de servidores militares como empregados domésticos nas residências de oficiais-generais, circunstância que fere não somente a legalidade, como a moralidade e a impessoalidade e, de forma direta e frontal, em muitos casos, a dignidade da pessoa humana, na figura dos militares sujeitos a tratamento não condizente com a sua condição de cidadão e servidores públicos”.

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A juíza Gianni Konzen rebateu argumentos dos militares. “É descabido falar em segurança nacional quando as referidas atividades vão de cozinhar, arrumar, lavar ou transportar o oficial ou seus familiares, até passear com animalzinho de estimação e limpar a sujeira deste. O fato de existirem motoristas, cozinheiros e arrumadores vinculados a oficiais generais não extrapola o favor legal. O que é vedado é o uso particular de força de trabalho de servidores em tarefas ou ventos particulares”.

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A magistrada apresentou, então, a sua decisão: “julgo procedente o pedido para determinar que as Forças Armadas deixem de fazer uso de militares subalternos (especialmente taifeiros) em tarefas eminentemente domésticas nas residências de seus superiores”.

Questionado sobre os fatos relatados por Briones e sobre as conclusões da juíza federal, o Comando da Aeronáutica respondeu que não se pronuncia sobre “processos judiciais em andamento”.