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Quando cheguei à TV Globo do Rio de Janeiro, em 1997, como repórter, Cid Moreira já não era mais o apresentador do Jornal Nacional. Tinha deixado o então principal noticiário da televisão brasileira no ano anterior. Ele fez parte da geração de apresentadores oriundos do rádio. Não participava das reuniões de produção, não se envolvia com o fechamento do jornal, não acompanhava a edição das reportagens que seriam exibidas. Quase sempre, nem passava pela redação, não tendo acesso com antecedência aos textos que introduziriam essas matérias, que no telejornalismo são chamados de “cabeças”, e àqueles que eventualmente complementariam a reportagem, conhecidos como “notas-pé”. Já no estúdio, minutos antes do início da transmissão, sim, passava os olhos nos textos para se familiarizar com o que leria ao vivo. Mesmo assim, Cid se tornou uma referência no telejornalismo. Sua voz grave, agradável, sem afetação, sua dicção perfeita, isso lhe permitiu conquistar a confiança dos brasileiros, conquistar credibilidade, com base na isenção e no equilíbrio que os apresentadores que o sucederam – jornalistas, e não radialistas – perderiam em apenas duas décadas.
Fiz parte de uma geração de apresentadores de telejornal ainda preocupada em manter certa distância das notícias que transmitia. Vínhamos da faculdade de Jornalismo e sabíamos que éramos muito mais do que um rosto, um tronco e uma boa voz. Entendíamos que uma apresentação eficiente exigia de nós uma participação ativa na feitura do telejornal. Participávamos das reuniões para a definição das pautas que seriam produzidas, acompanhávamos a produção (eventualmente, fazíamos reportagens), frequentávamos as ilhas de edição e tínhamos certa autonomia para implementar algumas modificações nos textos escritos pelos editores e que leríamos no teleprompter. Nada radical, significativo, apenas alterações, por exemplo, que pudessem facilitar a leitura, a escolha de uma palavra que não desse um “nó na língua”, mais coloquial, a quebra em duas de uma frase muito longa... Portanto, tínhamos conhecimento profundo sobre os conteúdos que seriam exibidos e o que falaríamos, o que deveria dar ainda mais credibilidade ao nosso trabalho.
As redações foram tomadas por militantes histéricos, por uma gente soberba, querendo “transformar o mundo”, seguindo seus próprios preceitos, suas ideias furadas, seus interesses
Mesmo assim, nessa transição da geração mais formal do Cid Moreira para a minha, os comentários dos apresentadores, os improvisos, nada disso ainda era permitido. Recebíamos a orientação para controlar o gestual, as expressões faciais, a não reagir enfaticamente às notícias, como forma de manter certo distanciamento, a isenção. Mesmo os erros – nossos e técnicos – continuavam causando algum constrangimento. Uma engasgada, uma tosse inesperada, um tropeço, isso costumava ser seguido por uma palavrinha: “perdão”... Se um VT não rodasse, ou rodassem a reportagem errada, normalmente se ouvia do sério apresentador: “desculpem a nossa falha”. Demorou muito tempo para que esses erros fossem tratados com naturalidade e passassem a reforçar o caráter humano dos apresentadores de telejornal, que, como todas as pessoas, também não são infalíveis.
A questão é que os apresentadores de telejornais e programas jornalísticos passaram a falhar miseravelmente, e naquilo que não se pode perdoar. Muito provavelmente porque já não havia na chefia jornalistas do porte de Alice-Maria, Armando Nogueira e Evandro Carlos de Andrade, três dos maiores diretores que tive nos meus 36 anos de carreira. Aboliram-se os fatos, o debate, proibiram-se perguntas, ninguém quer mais saber de “todos os lados da história”. As redações foram tomadas por militantes histéricos, por uma gente soberba, querendo “transformar o mundo”, seguindo seus próprios preceitos, suas ideias furadas, seus interesses. O jornalismo cortou seus punhos, partiu para a arrogância, passando a trabalhar com “verdades próprias”. E os apresentadores, mais soltinhos, disparam livremente suas opiniões estapafúrdias, sem base no mundo real. Podem sorrir, gargalhar, se sacudir, dar “lição de moral”. São capazes de absolver alguém condenado em três instâncias, são capazes de falar em “ciência”, proibindo o confronto de ideias, sua base, o ponto e o contraponto, o argumento e o contra-argumento, a tese e a antítese... O que já foi jornalismo agora defende a perseguição política, a censura, e sangra, sangra muito.
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Já não há mais editoriais lidos com competência por Cid Moreira. Os que se acham jornalistas têm autonomia para opinar sobre o que quiserem. Eles falam de tudo, como se fossem especialistas em tudo, como se soubessem de tudo. Estão protegidos por diretores, por uma redação raivosa, que se acha “educadora”, “catequizadora”, pronta a “dar pitos” naqueles que discordarem desse descabido “jornalismo didático”. Já não há mais erros eventuais, equívocos, e consequentes correções e retratações rápidas... O que poderíamos chamar de “desorientações ocasionais” nos tempos do maior apresentador de telejornais do Brasil, que nos deixou essa semana, agora é a tônica, o padrão. E isso tudo se deu num período curto, mas num processo muito doloroso para o país. Em todas as desgraças a que nos atiram, lá está o jornalismo transfigurado, mais cúmplice dos horrores do que omisso em relação a eles. E, se muita gente respondia ao boa-noite de Cid Moreira no Jornal Nacional, hoje, do jeito que o Brasil está, quem tem um mínimo de informação, de senso crítico sabe que não haverá um bom dia, uma boa tarde e uma boa noite... Não se depender daquilo que já foi tratado por jornalismo um dia.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos