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Luís Ernesto Lacombe

Luís Ernesto Lacombe

Manifestos

Diário de intimidades

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E se não fosse uma cartinha, uma carta aberta? E se fosse um diário? Do tipo que muita gente escreveu, até que o papel, a caneta, os cadernos de capa dura, as agendas, até que tudo isso ficasse esquecido e fosse reinventado em telas, teclados, num planeta digital, binário... Uma sequência doida de números: zero, um, zero, zero, um, um, zero... Não sei se quem escrevia diários o fazia só para si, se temia verdadeiramente que eles fossem descobertos e lidos por outras pessoas, ou se, ao contrário, ansiava por leitores. Talvez não imediatos, do tipo que encontrasse nas folhas de papel a tinta da caneta ainda úmida e, sem querer, borrasse as linhas com os dedos. Leitores futuros, que, depois de tantos anos, já veriam a poeira baixada, dramas e impasses resolvidos, remediados, a ponto de restar apenas uma doce nostalgia, superação, realização, alegria.

“Meu querido diário”, a descrição de acontecimentos podia começar assim. Podia ser mesmo um simples relatório de atividades, ou podia trazer também reflexões, pensamentos, sentimentos, confidências, segredos reunidos em letra cursiva... Estou deduzindo que menos gente, hoje em dia, se dedique a escrever diários, mas sempre haverá aqueles mais apegados a registrar dessa forma suas experiências, suas vivências. Vou supor, então, que haja, na grande maioria dos casos, nessas memórias rabiscadas (ou digitadas), um nível quase absoluto de sinceridade. Vou supor que não haja objetivos escusos, que cada palavra, que cada frase seja uma entrega quase total à verdade. Como se ninguém fosse capaz de se render a uma edição sempre positiva de si mesmo.

Na cartinha esvoaçante, frágil, afirmam que somos todos iguais perante a lei. Em suas confissões, nos dividem em grupos. Defendem a censura, defendem prisões, que sofram aqueles que não pensam como eles

De repente, encontro numa gaveta, escondidos entre roupas em desuso, emboloradas, ou num baú pesadíssimo, impossível de ser deslocado, os diários de uma gente sonsa. São pessoas que assinam uma carta aberta se declarando grandes defensoras da democracia. Eram a favor de mudanças para aumentar a segurança e a transparência nas eleições, seus diários deixam isso bem claro, mas mudaram de ideia. Temem que um ser abjeto rasgue a Constituição, mas guardam entre as folhas de seus diários pedacinhos da nossa lei máxima. Na cartinha esvoaçante, frágil, afirmam que somos todos iguais perante a lei. Em suas confissões, nos dividem em grupos. Defendem a censura, defendem prisões, que sofram aqueles que não pensam como eles.

Trabalham por um político condenado em três instâncias, que não deveria ser candidato a mais nada. Deixam em ruínas o Largo de São Francisco, detestam a maior operação de combate à corrupção no Brasil, defendem que alguém só pode ser preso quando não tiver mais dinheiro para pagar seus advogados. São banqueiros bonzinhos, que abominam o lucro a qualquer custo, que amam seus clientes, que fazem qualquer sacrifício por eles. São pessoas tão incríveis, acima de qualquer suspeita, escreveram uma carta tão linda... Só que esqueceram de queimar seus registros mais íntimos. E está lá, escrito em letras garrafais: “Meu querido diário, que se exploda o Estado Democrático de Direito!”

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Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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