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O policial civil que interpelou a jornalista da Globo News Natuza Nery foi previamente condenado. O que vão decidir agora, ao que tudo indica, é por quais crimes... Injúria, calúnia, difamação, agressão física, ameaça, abolição violenta do Estado Democrático, golpe de Estado... Arcênio Scribone Júnior já foi afastado de suas atividades operacionais. Enquadrado como “bolsonarista” e inimigo do Supremo Tribunal Federal, ele pode até ser incluído nos inquéritos ilegais do STF. Vai sobrar para a polícia, de um modo geral... Vai sobrar para todo mundo... Vão dizer que as redes sociais precisam ser “reguladas” e que o Estado deve continuar atuando contra a liberdade de expressão.
Preciso deixar claro que não defendo nenhum tipo de agressão, de ataque verdadeiro a ninguém. A questão é que ainda é muito cedo para saber o que realmente houve entre a jornalista e o policial num supermercado de São Paulo no penúltimo dia de 2024. As imagens do circuito interno de câmeras ainda não foram divulgadas (e talvez nunca sejam, se a história envolvendo o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma servir como modelo). As possíveis testemunhas também não foram ouvidas. Por enquanto, temos a palavra da jornalista contra a palavra do policial. Natuza diz que ouviu dele que ela e a emissora para a qual trabalha deveriam ser aniquiladas. Arcênio afirma que não praticou nenhuma infração penal, que não fez ameaças, apenas uma crítica ao trabalho da jornalista.
Gilmar Mendes, que nem deveria usar redes sociais, que deveria se manifestar apenas nos autos, usou o X para dar pitaco sobre o caso de Natuza Nery
O problema maior é que o caso imediatamente mobilizou o ministro do Supremo Gilmar Mendes e o advogado-geral da União, Jorge Messias, que pediu “uma ação rápida das autoridades para investigar e responsabilizar o agressor”. Contra os opositores da aliança STF-PT tudo deve ser mesmo rápido. Ordenamento jurídico, devido processo legal, direito ao contraditório, ampla defesa, isso tudo pode ser ignorado. Messias, que teoricamente defende a União, não pediu diretamente uma investigação sobre o caso em si, mas sobre o policial, que ele já trata de antemão por “agressor”. E, como as redes sociais ainda não estão totalmente censuradas, há nelas uma série de críticas ao advogado-geral da União e a Gilmar Mendes. Uma conta no X disse que o movimento dos dois confirma a existência de uma “liga dos cumpanhêru”, cujo lema é “mexeu com um, mexeu com todos”.
Gilmar Mendes, que nem deveria usar redes sociais, que deveria se manifestar apenas nos autos, usou o X para dar pitaco sobre o caso e foi chamado por usuários da rede de “comentarista político”, “influenciador digital”, “blogueiro”... O ministro escreveu o seguinte: “O ataque sofrido por Natuza Nery, em razão do simples exercício diário de seu ofício, exige pronta resposta do poder público, em especial dos órgãos de persecução penal. É de nossa manutenção na pauta civilizatória que estamos a tratar. As democracias dependem do jornalismo profissional; sem ele, não há liberdade de informação e, por conseguinte, liberdade de expressão”. Como resposta à publicação, muita gente lembrou também o caso de 2018 em que Gilmar mandou um repórter enfiar uma pergunta em determinado lugar...
O procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro Marcelo Rocha Monteiro explicou muito bem: “Não cabe a ministro do Supremo ultrapassar sua competência constitucional para provocar a atuação do órgão independente de persecução penal, sobre o qual não deveria ter nenhuma ascendência à luz da própria Constituição Federal. O bom direito diz que ocorre excesso passível de caracterização de abuso de poder quando o agente público atua fora de sua estrita competência legal”. Agindo dessa forma, um ministro do Supremo se traveste de agente político e, enquanto medidas legais não são tomadas contra esse tipo de comportamento, ele deveria, no mínimo, aceitar o que faz parte desse jogo: as críticas. E isso vale também para jornalistas que se entregam alucinadamente à militância política.
Outra questão que precisa ser colocada: não houve apenas uma agressão verbal de Gilmar Mendes a um jornalista em 2018... No ano seguinte, o STF censurou o portal O Antagonista e a revista Crusoé, por conta de uma reportagem sobre “o amigo do amigo de meu pai” – no caso, o ministro Dias Toffoli –, baseada em depoimento de Marcelo Odebrecht. E a censura contra jornalistas e veículos de imprensa, principalmente os independentes, só aumentou. Muita gente que não faz parte da “liga dos cumpanhêru” passou a ser perseguida, foi incluída em inquéritos ilegais, teve redes sociais e canais em plataformas de vídeos banidos, passaportes cancelados, contas bancárias bloqueadas. Muitos tiveram de deixar o Brasil. Para esses, não há garantia do exercício profissional, liberdade de expressão, “pauta civilizatória”...
Ou seja, aos jornalistas da tal “liga” querem garantir a tal “liberdade de expressão absoluta”. Eles podem dizer o que quiserem, mesmo que sem base nos fatos, no mundo real. Podem afirmar que o STF “salvou a democracia”, que Lula não foi condenado em três instâncias e libertado da cadeia numa manobra imunda, que manifestação que termina em quebra-quebra pode ser chamada de “tentativa de golpe de Estado”, quando interessa aos poderosos... E que se cuidem os jornalistas sérios, que ainda não foram “aniquilados” e fazem críticas fundamentadas e ponderadas à aliança STF-PT. No seu encalço estarão o Supremo e a AGU, que, com Lula de novo na Presidência, tem processado por crime de injúria muitos profissionais da imprensa, esses que sabem muito bem que o único regime em que não há espaço para críticas e questionamentos é a ditadura.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos