Eles podem arrancar folha por folha da Constituição. Podem rasgar cada uma em dezenas de pedacinhos, impedindo até que o melhor montador de quebra-cabeças tenha facilidade na reconstrução. Podem até sambar sobre os pedaços de papel espalhados pelo palco particular que eles iluminam para si mesmos. Se resolvem não picotar tudo, se mantêm algumas folhas intactas, é porque são ardilosos interpretadores de texto. Em parte, a forma se mantém, o físico, o material, mas a essência muda. As frases são as mesmas, cada palavra, cada sílaba, cada letra, toda pontuação, mas mudam o significado, a semântica, o sentido. E o livre entendimento de tudo pelos ungidos deve ser inquestionável. Se acharem necessário, eles podem até criar leis. Eles têm o poder.
O vigia do vigia anda há muito distraído, passivo, quase morto. Não quer ver o esbulho, não quer ouvir nada. Há um estrondo enlouquecedor, está tudo se quebrando. As folhas de papel rasgadas com fúria vão ganhando corpo, vão virando monstros movidos também pela interpretação catastrófica do que ainda é palpável, mas subvertido, invertido, pervertido. Vidros espatifados, o solo se abrindo, estruturas que pareciam sólidas rachando. Os monstros avançam para o colapso. São chamados de inquéritos, carregam a palavra que me amedrontava nas brincadeiras de criança: inconstitucionalissimamente...
O vigia do vigia anda há muito distraído, passivo, quase morto. Não quer ver o esbulho, não quer ouvir nada
O vigia se mexeu, mas não deu em nada. Ele só mudou de posição num sono profundo. Crimes de responsabilidade, crimes de responsabilidade, nem em seus sonhos, nem em seus pesadelos, em situação nenhuma. Está inerte de novo... O vigia que não vigia. Não vai suspeitar de ninguém. Os rasgadores da Constituição, claro, não suspeitam deles próprios e dos que estão com eles. Todos devem acreditar nos ameaçadores poderosos. Todos devem aceitar que eles são a verdade, somente a verdade, nada além da verdade. E que ninguém venha choramingar, falar, aos soluços, aos engasgos, em “modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo”.
Aristóteles disse que “o homem é um animal político”. Alguns são apenas animais e querem fazer política, mesmo que sejam selvagens e incapazes. Querem fazer política, mas estão no lugar errado. Não poderiam dar um passo, um pio nessa área. O vigia deveria lembrá-los disso, mas ainda dorme pesadamente. E os brutamontes ficam se metendo em turbas e discursos coletivistas, porque a “democracia liberal burguesa está em crise”, porque há um grupo a derrotar, a eliminar... O vigia se mexeu de novo. Agora dorme de bruços. Os sequestradores e torturadores da Constituição acham graça.
E lá vão eles, juntos e misturados, achando que têm “cabeça política”, que “vivenciam política”, que têm “experiência política”. O vigia dorme, sonhando com pessoas de bem, com “comunistas do bem”... Os sonhos são assim: às vezes, podem ser mesmo completamente desgarrados da realidade. É um sono pesadíssimo. O barulho é ensurdecedor, nessa destruição de tudo. Nem beliscões, nem tapas, nem pedras e paus, socos e pontapés; os animais e os monstros avançam, na sua ideologia empobrecedora, aprisionante e assassina. Quando finalmente despertar (e eu tenho esperança de que isso aconteça a tempo), o vigia terá de se movimentar freneticamente, para endireitar um país que tem cada vez mais “crimes sem castigo e castigo sem crimes”.
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