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O chapéu

Ilustração: Felipe Lima (Foto: )

Naquele velho, o que primeiro me chamou a atenção foi o chapéu. Era um chapéu de palha de aba larga, já com alguma história, mas muito bem conservado. Um arranjo de peninhas coloridas, talvez de papagaio, o enfeitava. O velho caminhava devagar, à minha frente, avaliando as obras no Passeio Público. Observava a terra revirada, ainda úmida de chuva, a ausência dos manacás, os viveiros passando por reformas. E o lago drenado, onde meses atrás se afogou um homem. O velho contemplava aquele leito de concreto exposto, livre do lodo e da água escura que o cobriam, e era como se examinasse uma nudez inédita. Não é sempre que se vê o fundo das coisas.

Diante do cercado das cotias, parou para ouvir a pregação de um pastor de sotaque espanhol, debaixo do pinga-pinga de árvores imensas. Um grupo de rapazes com fome se enfileirava ali, à espera do café da manhã. Mas a comida não seria distribuída antes do fim do sermão. Era preciso esperar e ouvir. O pastor os alertava contra a astúcia do diabo, sua presença indubitável entre nós, e o velho, que não tinha fome, não se deixou convencer. Na hora da prece, não tirou o chapéu, nem rezou. Dando as costas aos homens, deu preferência às cotias que, por sinal, já haviam sido alimentadas.

Mais adiante, à sombra de um jacarandá, uma ligeira confusão o deteve. Era uma briga entre dois cachorrinhos de latido estridente, cada qual preso a uma coleira. Na verdade, nem brigaram: foram contidos a tempo e arrastados um para longe do outro. Mesmo assim continuaram latindo, e seus donos se desculparam mutuamente, dizendo que seus cães, na realidade, eram mansos. Como se a mansidão, por si só, fosse uma qualidade superior.

Na saída da Carlos de Carvalho, uma senhora, trepada na cerca, elogiou o chapéu do velho e o chamou para uma conversa. Embevecido, ele parou para ouvi-la. Ela era mais nova que ele, mas não muito. Usava um colete de pele, de longos pelos castanhos, que lhe dava uma aparência embrutecida de ursa.

O velho falava, mas era impossível ver sua boca, um vasto bigode branco a escondia. A mulher, no entanto, gostava de ouvi-lo. Chegaram a um acordo e saíram para a calçada, onde passaram a caminhar lado a lado, rumo a um quartinho de pensão. Preparavam-se para cruzar o asfalto quando um motorista desavisado, ao tentar uma conversão simples à esquerda, se atrapalhou com a rua de mão inglesa, e quase se chocou de frente com um motoqueiro. Os freios e as buzinas gritaram, e a senhora de colete se assustou e gritou junto, desequilibrando-se perigosamente sobre os tamancos. Espantado, o velho não soube como agir, nem achou que devesse ampará-la. Então só perguntou se estava tudo bem. Ela se recompôs e pediu a ele que a perdoasse, ando me assustando fácil por esses dias, ontem fez um ano que meu filho morreu num acidente de carro. Foi isso que ela disse, ou pelo menos foi o que pude ouvir, enquanto passava.

O velho, então, tirou o chapéu. Seus cabelos eram brancos e fartos. Não disse nada. Apenas tirou o chapéu, pois descobrir a cabeça lhe pareceu o bastante, um gesto mais eloquente do que qualquer discurso. Tirou o chapéu e, com ele nas mãos, diante do peito, ficou olhando para mulher, sem dizer nada, à espera de qualquer coisa.

Passei por eles e eles não me viram. Segui adiante e os abandonei com aquele novo problema: ir ou não ir ao quartinho, agora em companhia desse fantasma, a lembrança de um moço morto. Ainda vi quando o casal atravessou a Carlos Cavalcanti e parou em frente à pensão. Conversavam. De longe me pareceu que a mulher já sorria, e fazia isso porque era disso que ela precisava, sorrir. Vi quando apanhou o chapéu do velho e o pôs na própria cabeça, e riu para ele, se achando bonita ou engraçada. Ele não se opôs àquela expropriação, nem àquele riso, e também riu. Foi a última vez que os vi.

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