Acabei de deixar minha filha na escola, e agora cruzo a ponte sobre a Nicolau Maeder, de olho na cerejeira da Ivo Leão. Sempre que passo por ela, em fins de julho, começos de agosto, sinto que algo está prestes a acontecer entre nós. Sim, fantasio um flerte com a árvore, ou com qualquer coisa que nela habite. É uma expectativa delirante, mas que não me prejudica, pelo contrário. Trata-se de um breve exercício de surrealismo, que me relaxa e satisfaz.
Desço a escadaria da ponte, reabastecido, e avanço cidade afora, em busca do coração da cerejeira. Rente ao muro do Cemitério Luterano, vejo uma roda de três mulheres acocoradas. Talvez trabalhem num despacho, concluo apressadamente, pois despachos são comuns neste lugar. Só que ainda estamos no intervalo do almoço, e a ideia de que, a esta hora, alguém aqui possa estar se dedicando a artes de bruxaria, ainda mais em dia de Novena do Perpétuo, é absurda, digna de um sonho (e, por isso mesmo, preferível a qualquer outra).
Assim, movido pelo vício profissional da curiosidade, me aproximo daquele pequeno conciliábulo. A cena tem sua força, e me sinto recompensado. As mulheres acocoradas acarinham um gato branco. O gato está deitado, de barriga para cima, numa réstia de sombra, e penso que as mulheres talvez o acarinhem por prazer, ou mesmo por amor ao que se poderia tolamente chamar de felinidade.
Mas estou errado. O que as motiva é uma aflição, um impulso de resgate. Pergunto a elas o que houve com o gato, e elas me corrigem, é uma gata. Usa uma coleira rosa e traz ali, pendurada, uma lingueta de metal com seu nome. Reformulo a pergunta, portanto, e a amplio: o que houve com a gata, e quem é o seu dono? Elas me dão o nome de alguém cujo telefone fulgura numa etiqueta presa à coleira do animal. O nome não nos diz nada, e nem a gata reage a ele. A gata, aliás, está muito mal, dizem, perdida e talvez à beira da morte, e não somente às portas simbólicas do cemitério, pois faz minutos que, embora consciente, não reage a estímulo nenhum. Para comprová-lo, dobram e desdobram suas pernas, puxam seu pelo, cutucam suas orelhas e alongam sua cauda. A gata não se opõe, e elas discutem hipóteses: gestação difícil, ingestão de veneno, hemorragias internas, carências emocionais ou vitamínicas. Seja como for, é necessário salvá-la, o senhor não acha?
Olho para o bicho, que me perscruta com seus olhos amarelos. Espera de mim um diagnóstico. Não sei, respondo, mais à gata que às mulheres. Nervosas, elas me cobram objetividade. É urgente telefonar ao dono do animal, mas estão sem créditos, e o celular que portam passa de mão em mão, inútil, me fazendo lembrar do olho único das três Graias ludibriadas por Perseu. Por um momento, aliás, temo que sejam mesmo três bruxas, que de repente comecem a recitar sortilégios e, a exemplo das feiticeiras que bagunçaram os conceitos de Macbeth, me revelem que o belo é feio, e o feio é belo – ou, como preferiu o tradutor Manuel Bandeira, o bem, o mal, é tudo igual.
Em vez disso, porém, me pedem um favor, uma ajuda prática. Querem meu celular emprestado, em benefício da gata. Apalpo os bolsos do casaco e digo que, infelizmente, esqueci o aparelho em casa, o que é mentira, mas as decepciona, exatamente como faria se fosse verdade. Desejo boa sorte à gata e vou embora.
No fim da tarde, voltando à escola de minha filha, já não as vejo na entrada do cemitério. As mulheres sumiram, a gata não. Está viva, claro, e a localizo em meio aos galhos floridos da cerejeira, descansando na forquilha central da árvore. Alvacenta, quase prateada. A coleira da mesma cor que as flores. O coração preguiçoso da beleza. Ele independe de meus cuidados, bate por conta própria, e só quando quer.