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O encontro da esquerda com o mercado, que assistimos a olhos nus, tem várias fontes. Aponto aqui uma delas, que sendo fruto de uma questão filosófica muito antiga, passando pelos debates políticos nos séculos 17 e 18, acabou por aterrissar nos departamentos de marketing. E nessa aterrisagem, acabou por eleger Jean-Jacques Rousseau (século 18) como seu patrono.
Podemos resumir a ancestralidade dessa questão de três formas distintas, mas relacionadas. 1. O homem é mau ou bom? 2. Sua natureza tende a autonomia ou depende sempre de formas exteriores de contenção? 3. A razão controla a vontade ou essa é passional e irracional?
Claro que atravessamos aqui longos e complexos debates sobre livre arbítrio, pecado, autonomia da razão, papel das leis, caráter perigoso das paixões e afins. Evidente que essas questões se transformaram ao longo dos séculos e mesmo a forma de colocá-las sofreu mudanças.
Raro quem hoje considera a primeira delas como possível de ser formulada deste modo. Quando se trata da segunda, quase todo mundo acha que a autonomia depende de um sujeito em interação com as formas exteriores de contenção. Quase ninguém hoje assume como possível fazer essa separação bruta entre razão e paixões, tendo-se chegado mesmo a propor conceitos para o uso da psicologia do marketing do tipo inteligência emocional e similares.
O fato é que essas questões, por mais antigas que sejam, têm fortes apelos no marketing hoje. E é aqui que começa o encontro entre ele e a esquerda. Mas, antes, vejamos os debates políticos referidos acima.
Autores como Thomas Hobbes (século 17) e Edmund Burke (século 18), os "pessimistas", e Jean-Jacques Rousseau, o "otimista", conceberam, nas suas discussões sobre filosofia política, mesmo que às vezes de modo implícito, uma visão de ser humano.
Aqui se dá, de modo definitivo, uma compreensão –pessimista ou otimista– de natureza humana que será essencial no debate político posterior, unindo democracia e mercado numa irmandade filosófica.
O autor contemporâneo Thomas Sowell resumiu bem esse debate ao definir duas concepções de ser humano, sendo uma restrita e outra irrestrita.
A primeira, mais próxima de um pessimismo antropológico, dito de forma superficial, entende o ser humano como sendo limitado em sua capacidade comportamental. O restrito aqui significa limitado na sua perfectibilidade, isto é, o homem não é capaz de se aperfeiçoar indefinidamente.
Já a irrestrita entende o homem como um ser infinitamente aperfeiçoável, por isso seu halo de otimista. A esquerda e o mercado amam esta visão irrestrita.
O conflito entre essas duas visões desenha, em traços largos, duas concepções de ser humano, sendo que a pessimista é ruim para os negócios.
A democracia, por sua vez, na sua condição de mito político fundacional da era moderna ocidental, também vê com maus olhos a visão restrita por ser demasiadamente contida.
Não arrebanhamos muitos votos falando mal dos seres humanos, né? Seria o homem capaz de toda autonomia que a forma mítica de democracia supõe? Por outro lado, a visão restrita autorizaria governos de maior tutela do ser humano, logo, menos democráticos? Não seria por esta razão que todo discurso sobre a democracia carrega nos tons de um cidadão autônomo aperfeiçoável pela própria democracia? E aqui chegamos à antropologia do marketing.
Não é por mero acaso que a categoria de consumidor cada vez mais se aproxima de cidadão, principalmente depois da sociedade em rede. Se você quer ganhar a simpatia do consumidor cidadão você deve agradá-lo. Ainda em 1974, no ensaio primoroso "Contemplação Carinhosa da Angústia", a escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís anunciava, com tristeza, que vivíamos numa era em que todo mundo queria agradar todo mundo. O Padre, o metafísico, o médico, o professor, os pais.
Se você quer ganhar votos e vender produtos fale bem das pessoas, de suas capacidades e de seu futuro de sucesso infinito. Diga que ele pode tudo, que nós poderemos sempre. Enfim, o otimista Jean-Jacques é o patrono do marketing.