Saiamos um pouco da miséria de nosso cotidiano e olhemos para o céu. A teologia é uma das ciências mais belas. A política e a peste nos fazem sentir como répteis se arrastando sobre a Terra.
Será que um ateu pode experimentar a graça? Poderia alguém que não tem fé ser receptáculo da graça divina de perceber a presença concreta de Deus, num momento inesperado da sua vida?
Num mundo dominado por formas banais de espiritualidade como reiki, psicologia positiva, neoxamanismo, astrologia, meditação zen, sexualidade tântrica, o que todos buscam é uma harmonia universal que acalme a maior de todas as tentações espirituais desde sempre: a tentação do desespero. Mas, como todo mundo sabe, essas formas de espiritualidade de consumo são todas falsas. Produtos ao portador de um narcisismo miserável.
Essas palavras são do escritor francês Thibault de Montaigu, autor do livro "La Grâce" (editora Plon, Paris, 2020), assim como as perguntas que abrem esta coluna: pode um ateu ser visitado pela graça? Sim, pode, segundo o autor.
O livro é uma pérola para quem conhece a grande tradição católica jansenista francesa, que nos deu nomes como Pascal, Racine, La Fontaine, todos no século 17 e, no século 20, autores como Georges Bernanos e, atualmente, Pascal Quignard e Thibault de Montaigu. Os jansenistas eram agostinianos estritos, próximos aos calvinistas, que nos legaram uma sofisticada teologia da graça e uma anatomia da alma conhecida como tradição moralista francesa. Foram perseguidos como hereges pela Igreja Católica e pela monarquia francesa ao longo do século 17.
Apaixonados pelo caráter contingente da graça, os jansenistas tiravam de letra esta questão: Deus gosta de se revelar a quem, normalmente, ninguém imaginaria que Ele visitasse? Claro que sim, basta ler a Bíblia. Deus não parece gostar do homem óbvio. O mesmo vale para a Sua encarnação no cristianismo, o Jesus de Nazaré, o Galileu. A começar por Moisés, Deus parece gostar de gente difícil.
No romance em questão, o autor, um ateu convicto e em depressão, acaba por tropeçar na história de um tio que, aos 37 anos, abandonara o mundo e se recolhera a um mosteiro franciscano após uma experiência radical com a graça. Seu tio fora, até então, um errante, promíscuo sexualmente, desesperado e solitário. A ovelha má de uma família de condes.
O autor acabara de ter uma experiência semelhante à do tio e não "sabia onde colocar na sua vida". A graça inesperada desorganiza esquemas de compreensão da vida e da ordem do mundo. O Deus inesperado encanta pelo próprio caráter inusitado de visitar alguém que nunca o convidou.
O narrador-autor, um escritor e jornalista de sucesso, aprende a dureza de ser visitado por Deus sem ter fé na Sua existência. Talvez, um dos maiores desafios intelectuais que um homem de letras pode viver. O encontro com a história do tio Christian serve a ele como roteiro para tentar compreender o que se passara consigo mesmo naquele dia, naquela capela de um mosteiro, em que buscava traços de um assassino da própria mulher e filhos para o seu próximo livro, que possivelmente se escondera ali.
A visita da graça já foi descrita por muitos. Normalmente, se dá de modo definitivo. Como dizia o filósofo judeu e místico A. I. Heschel, no século 20, uma vez que Deus decide se revelar a uma pessoa, ela não escapa. A parada última desse processo, assim descrita pelo pároco bêbado do "Diário de um Pároco de Aldeia", de Bernanos, é: "Tudo é graça". Tudo é dádiva e isso nos faz sorrir.
A fenomenologia da graça, assim denominada pelo teólogo suíço Hans Urs von Balthasar no século 20, não tem nada de abstrata. Não é uma ideia que vem à mente, mas uma sensação concreta que invade o corpo e o ambiente ao redor. Estamos na ordem estética. Como uma luz forte que invade o espaço, revelando a escuridão que ali habitava, ou uma tempestade que nos encharca, com suas gotas de água nas mãos e nos olhos.
A presença da graça transforma a vida pela doçura, pela misericórdia e pela beleza, causando aquela virtude, de todas a mais difícil, que é a esperança.
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