Sempre que tenho o prazer de ir ao leste europeu, ouço a mesma resposta quando conto que no Brasil a maior parte dos jovens “informados” e da classe culta em geral são simpáticos a regimes socialistas ou comunistas: uma gargalhada seguida de espanto. “Mas eles não sabem o que aconteceu aqui nos países comunistas durante décadas?”, me perguntam.
Claro que esta adesão ao socialismo e ao comunismo como tara intelectual não é um pecado brasileiro. Por todo o Ocidente, inteligentinhos brincam de socialistas e comunistas. Diante da violência e miséria que viveram, os habitantes dos países que padeceram sob o regime comunista de fato, só podem dar uma gargalhada como esta.
Arriscaria dizer que só agora começamos a ter a chance de tentar entender, em algum grau, nossa história política desde a Guerra Fria.
O trágico período da ditadura (que nenhum inteligentinho de direita venha dizer que não houve ditadura no Brasil) foi seguido por outro período em que, em vez de termos uma elite cultural que olhou para o país de uma forma um pouco mais realista (um filósofo diria, “empírica”), tivemos uma elite cultural monolítica que continuou presa à geopolítica da guerra fria. A polarização política no Brasil hoje é anacrônica. Direita e esquerda parecem pastar como jumentos na grama da Guerra Fria.
Se Bolsonaro e seus seguidores são uma espécie de cadelas hidrófobas que saíram do quarto escuro quase 30 anos depois (a imagem é inspirada em Nelson Rodrigues), nostálgicos de uma ditadura, a elite culta ativa nos “aparelhos culturais e educacionais” pós-ditadura se encastelaram numa narrativa atávica, presa a um “profetismo” marxista (e derivados) que logo estará na lata de lixo da historiografia.
Em vez de propor uma análise mais complexa e ampla da política, grande parte de nós preferimos transformar as universidades, a mídia, a arte e a cultura em espaços de disputa política baixa, a serviço de interesses de classe, assim como se vê hoje em dia uma parte do poder judiciário fazer a mesma coisa: que se dane o país, contanto que seus privilégios de uma República das Bananas continuem a funcionar.
A história do pensamento político é essencial para pensarmos qualquer política. A obviedade da afirmação acima é proposital. Referências existem por toda parte, cito aqui apenas uma delas: On Politics do professor Alan Ryan, que ensinou teoria política nas universidades Oxford e Princeton, da editora W.W. Norton & Company.
O debate sobre como fazer a vida em sociedade um pouco menos ruim (porque é disso que se trata a política), desde a Grécia, tem alguns marcadores essenciais. Vou dar apenas dois exemplos importantes.
Um deles é a busca de “regimes mistos”, como buscava Aristóteles em Atenas e Cícero em Roma, ambos na Antiguidade, e “Os Federalistas” (James Madison, John Jay e Alexander Hamilton) nos Estados Unidos, no final do século 18. “Misto” aqui significa um regime que integre minimante uma “aristocracia” (não de sangue) competente a agentes que representem o “povo”, a maioria, de forma razoável. A busca dessa integração institucional visa evitar a ganância dos poderosos e o ressentimento dos mais pobres.
Política é o campo em que conflitos autojustificados se organizam institucionalmente a fim de que esses conflitos não destruam a sociedade. Esta tradição atinge seu apogeu justamente nos Federalistas, com a criação de mecanismos práticos e institucionais de pesos e contrapesos que limitem o poder de todo mundo que tem alguma forma de poder.
Outro marcador essencial é o debate acerca da natureza humana (não vou debater com os inteligentinhos o conceito de natureza humana aqui).
De um lado, Santo Agostinho, na Antiguidade tardia, para quem o pecado faz de nós seres interesseiros que a qualquer hora podem destruir tudo para realizar seus desejos mais mesquinhos e que, portanto, necessitam de uma ordem mínima que os mantenha sob cuidado e atenção. David Hume, cético, já no século 18, pensava que seria uma máxima política justa supor que todo homem pode a qualquer hora agir como um patife, e, por isso mesmo, se faz necessário confiar desconfiando, em bom português.
Do lado oposto, a tradição, grosso modo, iluminista, de Rousseau a Marx (e derivados) para quem os homens são vítimas históricas que um dia, libertos da opressão, serão anjos políticos.
Você também está ouvindo a gargalhada de Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, Federalistas e David Hume?