Deveríamos estudar mais pré-história e menos o vale do Silício. Deveríamos ensinar as crianças a reverenciar nossos ancestrais do Alto Paleolítico ao Neolítico em vez de ensiná-las a lamber as botas dos apps.
Mas divago. Lembro que não há esperanças para o mundo contemporâneo para além da breguice generalizada do marketing digital como espiritualidade para a prosperidade. Os picaretas da inovação venceram.
Cada vez me interessa mais a história de longa duração de Fernand Braudel (1902-1985), a "longue durée". Ou estudos como o de David Lewis-Williams, arqueólogo sul-africano, acerca do Neolítico e das pinturas nas cavernas, que são as catedrais do Alto Paleolítico.
Braudel entendia que o tempo histórico se apresenta de três formas. A primeira, a longa duração em si, refere-se ao tempo imóvel ou geográfico.
Como ele mostra em seu colossal "O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II" (Edusp), a história silenciosa, profunda, é o Mediterrâneo, porque ele é permanente e por isso mesmo, de certa forma, tudo que ele toca se transforma nele mesmo.
O segundo tempo é o social longo: povos, civilizações, grandes processos históricos, como a modernização capitalista e suas revoluções. O terceiro é o do tempo curto, de eventos, tipo a Revolução Francesa ou a Segunda Guerra Mundial.
Estudar pré-história demanda esse olhar de longa duração. E aí, pelo fato de a espécie Homo sapiens ter a mesma estrutura biológica –nossa imobilidade biológica, de certa forma, se mantém no mínimo há 300 mil anos, numa conta conservadora–, podemos usá-la como referência para entender o comportamento de nossos ancestrais em sua longa duração, como faz o arqueólogo Brian Hayden no seu "Shamans, Sorcerers and Saints" (xamãs, feiticeiros e santos, Smithsonian Institute).
Nesta obra, Hayden assume nossa característica presente de pautar a vida cotidiana por reprodução, sexo, defesa, alimentação e busca de significado para os fatos da vida como uma longa plataforma comportamental, de base biológica, para entender os nossos ancestrais.
Os resultados são de fato consistentes no esclarecimento de achados arqueológicos pré-históricos.
Voltemos a David Lewis-Williams. Em uma série de obras, entre elas, destaco "The Mind in the Cave" (a mente na caverna), ele investiga famosas pinturas rupestres, tanto na África do Sul quanto no sul da França.
Para nosso arqueólogo, a mente espiritual, como parte da chamada revolução cognitiva –quando o pensamento pôs em curso nossa virada evolucionária em direção à adaptação e ao "sucesso evolucionário do sapiens"–, é uma chave fundamental para entendermos nossos ancestrais pré-históricos.
Sua teoria acerca desse processo é muito original e fonte de muitas controvérsias, mas de uma elegância sem par.
Para ele, íamos às cavernas, escuras, silenciosas, muitas vezes de difícil acesso, para pintar num esforço de lidar com as "vozes em nossas cabeças".
A datação dessas pinturas conhecidas começa por volta de 40 mil anos atrás.
O mergulho na escuridão e no silêncio do coração da terra funcionava como ambiente estético para a experiência religiosa. Para Lewis-Wiliams, naquele momento, não sabíamos com precisão que essas vozes eram nosso pensamento e, por isso, provavelmente, elas nos assustavam e nos encantavam em grande medida.
Nossos ancestrais, à semelhança de quem hoje tem intuições espirituais, assumiam essas vozes como a presença de um outro que lhes falava. Muito possivelmente, esse outro era o mundo animal.
Como o culto aos animais era comum então, pintávamos animais como arte sacra. Na caverna de Lascaux, na França, na entrada, à esquerda, uma figura meio homem, meio animal, anuncia a presença do xamã junto aos animais.
Muitos ainda creem que sonhar com mortos é receber visitas desses mortos, como nossos ancestrais, do Alto Paleolítico ao Neolítico, pensavam. Esse entendimento dos sonhos é uma das fontes de crença na imortalidade da alma.
As vozes dos nossos ancestrais ainda falam em nossa mente. Somos uma espécie pré-histórica com iPhone.
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