A Morte de Sócrates (1787), obra do pintor francês Jacques Louis David.| Foto: Wikimedia Commons
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Os valores morais são uma ficção. Uma invenção de alguns filósofos ou tradições religiosas. Uma ficção que hoje o marketing usa à exaustão para vender qualquer lixo.

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São muitas as fake news nesse ramo. Adoro em especial aquela que diz que faz parte do patriarcalismo machista achar que vale tudo pelo poder. Afora o fato de que quem diz essas coisas provavelmente nunca refletiu para além dos seus gurus e clichês, só os poucos inteligentes e cheios de má-fé podem supor que só “pessoas XY” são as únicas que fazem qualquer negócio pelo poder. A transformação das pessoas XX em anjos é tão ridícula quanto o terraplanismo.

Todo mundo faz qualquer coisa pelo poder e por dinheiro, e quem não fizer será atacado pela maioria esmagadora que faz, a começar pelos familiares.

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Aqueles que afirmam não estar à venda são os mais baratos, sempre. A indignação moral está on sale no mundo, o que atestamos pela cultura do cancelamento. Indignação hoje é uma banalidade. Todo mundo quer uma indignação para dizer que é sua. Não confio em indignados.

Aqueles que afirmam não estar à venda são sempre os mais baratos

O que impede alguém de fazer tudo pelo poder não são essas ficções ditas valores morais, mas sim causas muito menos cabíveis no discurso de gente bacaninha. Exemplos: incompetência para realizar o necessário a fim de fazer tudo pra conseguir tudo, sorte ou azar na herança genética, o que impacta disposição e saúde estrutural, história psicológica infantil, circunstâncias históricas e sociais específicas, enfim, nada a ver com essa tal escolha moral.

Por exemplo, no momento em que vivermos sistemas totalitários de fato de novo, sejam eles políticos ou de mercado, a maioria esmagadora vai colaborar, como colaborou com os nazistas e os soviéticos, a começar pelos artistas, intelectuais e pela gente que posa de portador de grandes valores morais.

Os valores morais são uma ficção. Quase nunca entram em questão nos momentos de decisão. O critério final para saber se algo é consistente neste início do século 21 é observar se o tema em questão vai bem na propaganda e no marketing. Se for, você está diante de blablablá.

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Encantamo-nos com nossas próprias criações filosóficas acerca da moral e dos valores, quando, na verdade, vivemos, basicamente, como os demais animais: comer, convencer a fêmea a ser receptiva, matar ou morrer.

O mito iluminista e humanista do progresso nos assola. Pô-lo em dúvida pode facilmente render a você a acusação de niilista ou depressivo. O indiscutível progresso da técnica serve de falso argumento para o discutível progresso moral. Não somos melhores do que éramos há 10 mil anos, nem seremos melhores em 10 mil anos. Continuamos patinando em coisas que as professoras precisam ensinar o tempo todo para os anjinhos eleitos de pais neuróticos: não bata no seu colega, não tome a bola dele, não diga que ela é feia.

A crença de que todo mundo é igual passará como passou a crença na leitura de presságios nas vísceras dos animais. A humanidade seguirá seu curso andando em círculos, indo para lugar nenhum, carregando nas costas a presunção de que seja especial.

A obsessão pelo bem abstrato, produto da Bíblia, de Sócrates e Platão, nos faz pensar que a vida só vale se for objeto de análise e axiologia moral (termo técnico para tábua de valores). Entretanto, muitos antigos sabiam bem que a vida vale pelas formas contingentes de lidarmos com a contingência e que não existem valores em si em parte alguma.

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Os valores morais são como uma ficção cujo roteiro é afirmar, contra o óbvio, que a vida é mais do que ela é de fato. A verdade é que continuamos a viver como sempre vivemos.

Engana-se quem pensa que a tarefa da filosofia se reduza ao culto à vaidade do humanismo. Não. A filosofia, como diz o filósofo britânico Simon Critchley, é filha do desencanto e não do espanto. Sua tarefa pode ser, quem sabe, retomar a velha crença, que tomo como superior à ficção moral posterior, de que a vida não vai para lugar nenhum e que lutamos para sobreviver com alguma beleza, um pouco de coragem e mínima decência.