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A expressão "novo normal" circulou muito no começo da pandemia por causa da saturação da vida online. Alguns, mais tardiamente, derivaram para expressões relacionadas como "velho normal" ou "melhor normal". A primeira significando os modos de vida para os quais não retornaríamos e a segunda para um modo de vida que assimilaria o que de bom teria no novo normal e no velho normal.
Outra questão recorrente é o que aconteceria com a humanidade. Sairíamos melhor da pandemia? Mais conscientes? Salvaríamos o planeta? A solidariedade seria o novo normal do contrato social? Mais recentemente alguns se perguntam: seria essa pandemia um divisor de águas na história?
Não sou afeito a acalentar protagonismos para a nossa época. Suspeito que nossos descendentes darão um parágrafo para ela nos seus manuais de história, semelhante ao que recebe de atenção a invenção do telégrafo. O Império Romano continuará merecendo mais páginas. Somos arrogantes, nos achamos a cereja do bolo, e quase sempre as perguntas sobre a pandemia carregam consigo a necessidade de que a resposta fale do nosso falso protagonismo na história da humanidade.
Entretanto, se olharmos nosso comportamento atual com os olhos de uma sociologia do microespaço e tempo, talvez encontremos, não o protagonismo que os palestrantes motivacionais vendem por aí, mas alguns traços que valem a pena ser apontados.
A irracionalidade permanece na moda. O movimento antivacina é o grande exemplo de nossa época. Como zumbis que parecem ter despertado dos cemitérios da época da Revolta da Vacina em 1904 no Rio de Janeiro, lançam a falácia do argumento liberal para serem paranoicos. Blá-blá-blá.
As epidemias têm sido esquecidas ao longo da história. Mesmo a gripe espanhola, grande massacre natural de homens e mulheres, foi esquecida pela imensa maioria da humanidade. A memória social tem a espessura da asa de uma mosca. Mas, talvez, aqueles que afirmam que essa pandemia permanecerá mais tempo em nossa memória tenham alguma razão.
A maior permanência dessa pandemia em nossa memória não tem a ver necessariamente com ela passar e permanecer na nossa memória social, mas, sim, com ela não passar nunca. Se a Covid vier a ser um divisor de águas em nossa história é como uma tomografia computadorizada (PET-scan) da vitória dos vícios mais banais em nosso cotidiano. As mídias sociais e profissionais terão seu protagonismo nesse processo.
Agora, até a gripe comum é uma nova gripe que acende o alarme de risco. A cada novo anúncio de uma nova variante, um novo ciclo de propaganda, autopromoção e fechamento de fronteiras se segue gerando um caos no mundo e em vários setores da economia. É o mercado da pandemia querendo se impor como player. A Covid não passará.
Essa epidemia não vai passar só porque os números caem, ela só vai passar quando seus agentes de sucesso perderem espaço público para fazerem propaganda das novas variantes e das gripes, incluindo aqui a própria OMS.
Expressões como "potencialmente mais infecciosa", "possivelmente resistente às vacinas", quando nada se sabe acerca da variante em questão, não são dignas de qualquer jornalismo minimamente decente. Parece que voltamos à enciclopédia de besteiras denunciadas no romance "Bouvard et Pécuchet" de Gustave Flaubert (1821-1880) ou ao jornalismo fake do século 19 francês descrito por Honoré de Balzac (1799-1850).
Mas uma das coisas mais evidentes é a vitória da preguiça como novo contrato social cotidiano. Todas as grandes manifestações de saudade da vida com os outros em carne e osso caíram por terra. Até agora, aparentemente, a grande sequela social da Covid – afora, é claro, a miséria social – é o reconhecimento do vício da preguiça como forma superior de liberdade individual. Dane-se o mundo, eu quero é ficar em casa.
As pessoas enchem o saco, são irrelevantes, são cheias de manias e insistem em falar comigo quando não quero – pensamos nós no silêncio da nossa consciência livre. Deus inventou o Zoom para me salvar. A Covid deu lugar de fala à minha preguiça do mundo.