Natureza humana é um daqueles conceitos de que todo mundo fala mal, mas que sempre acaba sendo operacional quando se quer refletir acerca de temas constantes na humanidade. Mesmo que a natureza humana seja histórica, a história parece se repetir ao seu bel-prazer.
No começo da pandemia de Covid, era comum ouvir jornalistas –os menos capazes– e marqueteiros –cegos pelo próprio exercício da profissão– levantarem a questão de se a humanidade não sairia melhor desse período. Agora já podemos ver o quão ridícula era essa hipótese. Dois neurônios são o suficiente para jamais considerá-la a sério.
Na história dos movimentos revolucionários do século 19, a natureza humana funcionou como uma barreira para qualquer tentativa de negar sua existência.
Sei bem que a teoria marxista encontra no seu elegante conceito de práxis a hipótese segundo a qual a ação social transforma o homem. Aliás, o novo homem no qual os marxistas e soviéticos diziam crer vem daí. Não me parece que isso tenha ocorrido, pelo menos no espaço de quase 200 anos de prática social.
Claro que tais crentes podem argumentar que a verdadeira práxis jamais existiu de fato. Este argumento seria da mesma ordem da afirmação de certos cristãos de que o reino de Deus nunca veio a se concretizar porque o verdadeiro amor cristão nunca teve lugar no mundo.
Guardo comigo a suspeita de que movimentos como o anarquismo, pelo qual sempre alimentei uma secreta simpatia, fracassaram justamente pelo equívoco em relação à natureza humana. Esta nunca foi capaz de viver sem alguma tutela política que a resguardasse da sua própria vocação para a violência, a inveja, o rancor e o amor à burocracia.
Mesmo que renunciemos ao conceito de natureza humana enquanto tal, autores como Tocqueville reconheciam que os diferentes e contraditórios fins que buscam os diferentes homens e grupos implicam um alto grau de persistência de uma inércia comportamental no homem que não parece ter mudado nas democracias até hoje –ou em qualquer outro sistema político.
A barreira à qual fiz referência acima é exatamente essa inércia da variável "natureza humana". Esta variável, que tende a ser invariante –por incrível que pareça–, se manifesta por baixo e por cima de qualquer tese que pressuponha a eliminação dela.
Autores como Hegel (1870-1831) acreditavam que com o tempo a racionalidade do real acomodaria as imperfeições desta natureza humana e que, ao final, tudo daria certo –Marx (1818-1883) era filho dileto do Hegel.
A tese de Hegel, em que pese a sofisticação alemã nela presente, acaba por parecer aquelas máximas de sabedoria otimista que afirmam que, se as coisas ainda não estão bem, é porque ainda não chegamos ao fim da história.
Incrível como palestrantes motivacionais ainda não cooptaram o elegante filósofo para o seu menu de afirmações falsas, mas simpáticas –além de venderem muito bem, é claro.
Já no século 21, John Kekes afirma que um grande impeditivo para a eliminação da natureza humana –ele prefere "condição humana"– como obstáculo à sua negação como fato dado é sermos atravessados por elementos contingentes, tais como herança genética, contexto histórico e geográfico, limites econômicos –ou a ausência deles–, componentes psicológicos e cognitivos, que impactam nossa racionalidade limitada. Atravessamos a vida lidando com esses elementos que nos constituem e nos ultrapassam.
Enfim, parece haver uma forte dúvida cética com relação à capacidade humana de se aperfeiçoar no que tange ao seu horizonte moral. A imperfectibilidade da natureza humana permanece como uma suspeita que paira sobre todas as propostas de utopias ou de grandes transformações sociais.
O filósofo australiano John Passmore (1914-2004) escreveu uma brilhante obra histórico-filosófica, "A Perfectibilidade do Homem", publicada no Brasil pela Topbooks, na coleção Liberty Classics, na qual ele persegue as várias teorias acerca da perfectibilidade humana.
Para o autor, o embate entre as teorias que afirmam a perfectibilidade do homem ou seu contrário representam uma luta pela consciência da alma humana.
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