Não vou falar de racismo, nem do seu justo combate. Deixo o tema para aqueles que reclamam seu lugar de fala e que, aos poucos, vão constituindo um novo nicho no mercado corporativo de consultorias, palestras, workshops e MBA.
O destino da chamada esquerda identitária é repousar no marketing, no compliance e na violência corporativa clássica. E encontrará aí seu lugar de fala, como tudo que recebe as bençãos da mercadoria. Entretanto, que os afoitos da vitória das identidades não esqueçam que o capital nunca será de confiança.
Reflito aqui sobre a escravidão dissociada da ideia de raça ou da sua forma mais recente conhecida nas Américas como a escravidão dos africanos e seus descendentes.
Escravidão é um modo de produção. E como tal, poderá voltar a qualquer instante em que a economia entre em colapso e retorne aos seus modos primitivos de organização. Essa realidade, de forma alguma, diminui o necessário combate a ela enquanto forma de violência social, nem tampouco diminui o valor do esforço histórico de eliminá-la das Américas ao longo do século 19.
A luta pelos direitos humanos permanece na sua inteira validade enquanto ferramenta moral e política, entretanto, em nada essa luta afeta o fundo da realidade humana em que, dadas certas circunstâncias materiais, todo o edifício reconhecido como moralmente justo pode ruir de um momento para o outro. É desse ponto de vista que olho aqui a questão da escravidão. Só iniciantes se encantam com "avanços" atípicos dos últimos 200 anos.
Reconhecer que a escravidão é um modo de produção sempre à mão carrega algumas consequências para quem queira pensar na sua existência numa chave histórica de longa duração, como diria o historiador francês Fernand Braudel (1902-1985).
Por outro lado, quando retiramos Hegel (1770-1831) do centro do materialismo histórico de Marx (1818-1883), nos resta uma forma peculiar de consciência histórica que se caracteriza por perceber que os modos materiais de produção determinam a supraestrutura social sem nenhum pressuposto de evolução ou aperfeiçoamento da relação entre senhor e escravo.
A miséria pode retomar a relação primitiva entre senhor e escravo a qualquer momento em que ela, a miséria, volte a se impor como modo de organização da produção das sociedades. Dito de outra forma: os conflitos sociais não levam a lugar nenhum a não ser a sua repetição de formas distintas e circulares.
Precisamos extirpar Hegel do coração do marxismo para reabilitá-lo como ferramenta de entendimento do mundo, caso contrário, em breve, Marx será patrono das fintechs.
Durante anos se repetia uma frase supostamente atribuída ao físico Albert Einstein (1879-1955) que era a seguinte: "Não sabemos a totalidade das armas da terceira guerra mundial, mas as da quarta serão o arco e a flecha". Essa frase carrega em si o sentido implícito de que a destruição da ordem social conhecida dos últimos anos poderia nos levar de volta a práticas consideradas superadas no âmbito das guerras. Mas ela vale para outros âmbitos relacionados às técnicas de produção social.
A conclusão necessária dessa forma de pensamento é que não há barreiras morais ou políticas para o retorno da escravidão se, em algum momento específico da história, grandes diferenças de poder se espalharem por um mundo em desordem política e econômica. Povos mais poderosos escravizarão povos menos poderosos para atingir os mesmos fins que pareciam tão normais a homens inteligentes como Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e outros antigos.
Entre os séculos 16 e 19, os africanos estavam justamente nessa condição: uma reserva de vulneráveis à disposição para o uso das "plantations" das Américas. O que acabou a escravidão, por enquanto, foi o avanço técnico dos modos de produção da vida, só isso, nada mais. O combate ao preconceito é (quase) inócuo diante desse fato.
A humanidade não evolui moralmente. A ideia dessa falsa evolução, hoje tão cantada em prosa e verso, é apenas a nova forma da velha promessa de que o capitalismo seja o clímax da vida moral.
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