Confesso que a palavra felicidade me causa certo enfado. As discussões sobre felicidade, normalmente, estão associadas, me parece, mais a causas de infelicidade do que propriamente a possibilidade de organizar algum saber que não seja imediatista, instrumental e imaturo sobre uma vida menos infeliz.
Em resumo, acho que o debate, incluindo a publicidade, sobre felicidade mais atrapalha do que ajuda, uma vez que vivemos um surto de depressão e ansiedade, principalmente entre jovens.
O modelo estratégico-pragmático, típico do paradigma do coaching e derivados, me parece causar mais expectativa e ansiedade, e, portanto, mais infelicidade, na medida em que trata a felicidade como um estado passível de ser alocado em metas existenciais, numa espécie de Excel existencial.
Evidente que a felicidade tem uma história na história da filosofia que transcende esse blablablá das pseudoterapias calcadas no Excel existencial. A verdade é que o entendimento de felicidade hoje é, em grande medida, construído a partir da ideia de realização de desejo, o que, na filosofia, sempre foi visto com uma certa desconfiança.
Gostaria de pensar hoje no vínculo entre felicidade e virtude, traço da escola antiga de Aristóteles.
O filósofo grego dizia que o objetivo da ética é a felicidade. Mas qual felicidade? Nessa direção, gostaria de pensar que, talvez, a felicidade menos banal esteja associada a um certo conjunto de virtudes práticas (arête ethikê), e não escrava da mera realização de desejo, como é comum pensar atualmente.
Se você consegue praticar na vida um certo número de virtudes, talvez você consiga atingir uma felicidade um pouco menos imatura.
Por exemplo, a prática da generosidade, virtude que combate dois vícios opostos, a mesquinhez e a prodigalidade (torrar dinheiro, em linguagem comum), nos ensina a partilhar de modo ordenado o que temos, e, assim, a nos desapegar dos excessos de amor aos bens materiais.
A leveza decorrente dessa condição pode produzir um estado de espírito que nos ajude a ver a vida numa perspectiva menos narcísica. Mas, como toda virtude, só se aprende praticando sempre.
Isto é: só se é generoso sendo generoso e não pensando como é importante sê-lo. O mesmo para a humildade, virtude contrária à arrogância e ao seu oposto, a auto-humilhação. O mesmo para a justiça, virtude contrária à perda do discernimento entre dar a alguém o que ele não merece ou negar a alguém o que ele merece.
A ideia de felicidade que daí surge significa um esforço de controle dos vícios, dando à pessoa um amadurecimento que nasce, justamente, da capacidade de ser constante neste mesmo esforço. Nada a ver com a mera realização do desejo, mas uma realização maior: aquela de aprender a controlar o efeito dos vícios sobre si. Daí a ideia de autonomia como forma da felicidade tão comum na filosofia grega antiga.
Já na tradição judaico-cristã, aparece um outro conteúdo que me parece essencial para uma experiência de felicidade menos banal e menos efêmera. Este conteúdo decorre das virtudes teologais (como dizem os católicos). Virtudes teologais são virtudes que dependem da ação de Deus para se realizar em você ou em mim: caridade (amor), fé e esperança.
Gosto de pensar a caridade na chave do amor e da misericórdia. Mas não apenas no sentido de que amar alguém assim retira você de você mesmo e rompe a cela do eu apaixonado por si mesmo, modo presente na filosofia de autores como Santo Agostinho. Não porque esse modo não seja consistente, mas apenas para pensar num foco menos evidente: receber a misericórdia de alguém, ou seja, sentir-se perdoado quando você se reconhece culpado é um bálsamo para seres frágeis moralmente como nós.
Claro que a recepção da misericórdia e do perdão pressupõe a humildade como terreno onde a caridade pode se instalar como bênção que nos é dada.
A fé nas coisas é intimamente associada à esperança. Para mim, esta é a maior das virtudes hebraicas: nos retira do pessimismo e nos devolve um lugar no mundo e na cadeia das ações humanas.
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