Ideias como "entre caçadores-coletores, mulheres ficavam o tempo todo coletando e cuidando de bebês enquanto homens caçavam e guerreavam" não são bem verdade. Não que as mulheres não cuidassem de bebês, mas nem por isso podemos fazer recortes simples a partir das diferenças sexuais e seus papéis sociais.
E essa impossibilidade se deve a, entre outras razões, elementos que a nós parecem irracionais. Quer um exemplo?
Segundo o antropólogo Alain Testart (1945-2013), no seu "L'Amazone et la Cuisinière, Anthropologie de la Division Sexuelle du Travail" (Edition Gallimard, 2014), mulheres participavam, sim, da atividade de caça, mas nunca com instrumentos que pudessem fazer sangrar o animal caçado. Só métodos que não implicassem sangramento do animal tinham a participação das mulheres. O autor dá todos os elementos que sustentam essa afirmação no livro em questão.
Por quê? Uma das hipóteses é que o sangue em si fosse a questão. As mulheres sangram mensalmente por muitos anos – inclusive, esses longos anos são os anos em que elas são férteis –, e é possível que a menstruação fosse vista como algum elemento mágico: todo mês sangra, mas não morre. É possível mesmo que o estar menstruada implicasse algum tipo de recolhimento nas chamadas "casas de menstruação" para uso exclusivo das mulheres, segundo o arqueólogo Brian Hayden no seu "The Power of Ritual in Prehistory" (Cambridge, 2018).
Lembro-me, em minha infância, quando escutava as mulheres dizerem que quando menstruadas não deveriam fazer bolos porque não dava liga. Não há relação de causa e efeito possível entre uma mulher estar menstruada, que é um processo fisiológico normal e que se manifesta em sangramento pelo órgão sexual, e a liga num bolo! Mas, então, por quê? Ninguém tem a mínima ideia.
É possível que nossos ancestrais tenham feito algum tipo de vínculo semelhante para excluir as mulheres da atividade de caça quando o animal exigia instrumentos de corte para caçá-lo. Isso nada tem a ver com assumir fraqueza por parte das mulheres, já que elas caçavam em outras situações, mas deve ter sido algum vínculo de teor "irracional", como a história do bolo e da menstruação.
A menstruação, como se sabe, já foi objeto de muito trabalho de significação. De um lado, alguns a consideravam indício de castigo divino, de outro, algumas creem que regarem alfaces com sangue menstrual colhido num cone significa emancipação feminina espiritual e política.
Você vê, minha cara leitora, como continuamos uma espécie atolada em elementos irracionais?
A menstruação também é objeto de enorme erotização por parte de muitos homens. Alguns homens têm um prazer especial em fazer sexo oral em mulheres menstruadas para sugar-lhes o sangue, como num ato vampiresco, que pode começar lambendo o sangue que escorre pelas pernas até chegar à fonte de tão almejada delícia.
Muitas mulheres que já passaram pela menopausa dizem sentir saudade da menstruação, o que não pode ser uma "saudade racional", já que a menstruação, além de implicar cuidados higiênicos que às vezes podem atrapalhar o cotidiano, ela pode causar dor e limitação de algumas atividades. Saudade, então, do quê?
É possível que seja saudade da juventude, saudade da fertilidade, saudade da potência de gerar vida, saudade do próprio desejo sexual mais forte no momento fértil, antes da menstruação. A verdade é que sangrar aqui encerra um ciclo de fertilidade e abre outro e, assim, deixa a mulher, de novo, pronta pra ser fecundada.
A força da fertilidade sempre foi um elemento muito importante nas religiões politeístas. O poder de gerar vida sempre foi uma forma de mistério.
Hoje, coitada, a menstruação não tem mais essa força. Ela tem sido mesmo objeto de polêmicas de linguagem. O politicamente correto, herdeiro da Santa Inquisição, tem lambido o tema com sua longa e gelada língua de réptil. Algumas dessas línguas dizem que não podemos falar que mulheres menstruam. Devemos nos referir a elas como "pessoas que menstruam". Deixemos a caravana passar. E a vida seguir o seu curso.
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