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Bingo todo mundo sabe o que é. Mas teoria da interseccionalidade nem todo mundo sabe. Ela tem ficado mais famosa, junto com a importação de termos como supremacista branco e similares. Além da Coca-Cola, os Estados Unidos exportam a crítica social também. Normal: os ricos sempre ensinaram a gramática aos miseráveis. Mas suspeito que mesmo os letrados na teoria da interseccionalidade devem achar estranho relacioná-la a bingo, atividade irrelevante de velhos sem futuro.
O mundo muda, e sempre para melhor, não é mesmo? Os americanos inventaram uma forma disruptiva de bingo para as crianças, o bingo dos privilégios. Imagino que logo alguma coordenadora de escola com preocupações sociais copiará tal modelo disruptivo. Assim como na fabricação de persianas e bikes, a educação também aspira à inovação como propósito.
Antes do bingo, um rápido esclarecimento sobre a brilhante teoria da interseccionalidade, que considero um primor de didática. Lembre a intersecção entre conjuntos. As professoras de matemática costumavam ensinar isso nas escolas. Hoje, não sei se a teoria dos conjuntos também caiu em desgraça por ser uma forma de opressão. Penso que seria ruim para o justo entendimento da teoria da interseccionalidade.
Se você for branco e gay, você, pelo menos, participa de um conjunto de oprimidos, os gays. Sendo branco, gay e cis –se veste e age de acordo com as normais sociais de gênero– você tem menos lugar de fala do que um trans. Um gay negro está em melhor condição que você, entende? Há uma intersecção neste caso entre dois conjuntos de oprimidos, os gays e os negros. Entendeu o princípio? Um gay negro trans, melhor ainda.
Agora, se você for branco, cis, hétero, evidentemente você nunca terá lugar de fala porque a intersecção aqui no seu caso é apenas entre conjuntos de opressores. Uma mulher trans branca é menos oprimida do que uma mulher trans negra. E por aí vai.
Entender como funciona o princípio da interseccionalidade é como andar de bike, uma vez aprendido, você sempre poderá navegar por essas águas revolucionárias.
Dito isso, o que vem a ser o bingo dos privilégios? (O que eu aqui denomino bingo da interseccionalidade porque é mais conceitual.) Tem mais credibilidade e poderá ser objeto de muitas teses acadêmicas e artigos em revistas Qualis A.
Imagine seu filho na sala de aula e a professora sorteando características sociais, étnicas, religiosas ou econômicas para ver em quais ele se enquadra.
A professora tira a cartela "branco". Você pensa se você se enquadra nessa característica. Em seguida "homem", mesmo processo. Em seguida, "pai médico", segue o mesmo procedimento de identificar-se ou não com essa característica. "Mãe trans", mesmo processo. E assim por diante. "Mãe cis", "férias no exterior". Vamos criando opções, o universo é o limite.
Feito o bingo, as crianças saberão o quão privilegiadas são ou não. "Estudo do meio em Trancoso", "pais veganos", "família adotou um vira-lata" – tudo coisa de opressor rico. Em seguida, levarão para casa suas cartelas identitárias e mostrarão aos pais o quão eles são privilegiados ou não. Claro que o objetivo não é renunciar aos privilégios, mas imagine se sua identidade tiver pais brancos, médicos, héteros cis. Nem o inferno terá lugar para alguém assim.
Enfim, o objetivo é criar consciência social ou crítica, esse fetiche da indústria educacional e cultural. O máximo de materialidade da consciência social é, hoje, o cancelamento ou justiçamento nas redes sociais –nome gourmet para linchamento.
Há, é claro, outras formas de consciência social: a criação de nichos de mercado, ganhar patrocínios e eleições.
Todo o debate cultural ou ideológico hoje é picuinha de mercado e luta por espaço de poder. Normal: a política sempre se ancorou na violência e na destruição do outro, só nos últimos tempos é que virou moda dizer que se faz política em nome do amor ao próximo.
A teoria da interseccionalidade é um método didático de cerceamento do pensamento público. Uma lógica impecável de exclusão em nome de uma justa causa.