Ouça este conteúdo
O anarquismo foi uma das correntes que ao longo do século 19 disputou o imaginário político dos revolucionários europeus. Tendo em figuras controversas como Mikhail Bakunin (1814-1876) um dos seus pais fundadores, o anarquismo tem ainda formas menos socialistas e mais individualistas, como com o filósofo americano Henry Thoreau (1817-1862), ou mesmo capitalistas, como com os anarcocapitalistas que cultuam o mercado.
A ideia abstrata de uma sociedade sem Estado é o modo mais comum de se pensar o anarquismo. Outro modo é associar o anarquismo ao niilismo político e à violência generalizada na sociedade. Uma forma mais consistente de conhecer o anarquismo é buscar alguns dos seus expoentes e, a partir de suas experiências históricas, compreender contra quem ou o que ele se voltava.
Para o leitor brasileiro, recomendo "A História do Anarquismo" de Jean Préposiet, traduzido pelas edições 70.
O príncipe russo Piotr Alexeivich Kropotkin (1842-1921) foi uma das maiores figuras do anarquismo. Vejamos alguns poucos reparos de contexto contra quem pensa que a Rússia seja um estrogonofe. Ser um príncipe no país nada tinha a ver com ser filho do czar. Era um título de nobreza ancestral. Conde e barão eram uma importação comprada da Alemanha pelos Romanov, que eram em si alemães de origem – argumento usado pelos russos durante a Primeira Guerra, acusando-os de traidores.
Já os príncipes eram descendentes dos boyardos, líderes tribais que haviam expulsado os mongóis e criado a Rússia europeia a partir de Kiev, a capital de todas as Rússias – um príncipe deitava raízes profundas na história da fundação da Rússia. A família de Kropotkin eram príncipes de Smolensk, no oeste russo. A tradição familiar sustentava que eram descendentes da dinastia de Rurik, que fora regente do principado de Kiev e reinara sobre a Rússia antes dos Romanov. Portanto, estamos diante da alta aristocracia russo-ucraniana.
Desde jovem o príncipe Kropotkin – título que rejeitou posteriormente – mostrou sua vocação rebelde aos maus-tratos contra os servos-escravos – sua família contava com cerca de 1.200 almas, o que era um bom patrimônio na época. Sua carreira militar o levou à Sibéria, recusando postos de mais futuro na hierarquia do governo. As viagens que ele fez pela Sibéria oriental e pela China marcaram profundamente sua visão de mundo e seu exercício de geógrafo.
Apesar da importância da convivência, principalmente na Suíça, com discípulos de Marx e Bakunin – que ele preferia –, onde aprendeu muito com os operários revolucionários, foi sua experiência com os camponeses russos que determinou sua visão política de mundo.
Já no Exército, Kropotkin encontrou aquilo que seria um dos seus grandes objetos de ódio e combate: a mentalidade burocrática e sua hierarquia. A percepção de que a burocracia – dita necessária para o bom funcionamento da sociedade – era, na verdade, um artefato contra as pessoas resolverem seus problemas cotidianos, saltou aos olhos de Kropotkin. Mais do que isso: há um gozo específico na mentalidade burocrática, e esse gozo degenera quem a ela se submete.
Vemos que antes de um discurso político contra a noção de Estado, Kropotkin percebeu que o poder da burocracia corrompia as pessoas e sugava a capacidade criativa delas. Qualquer pessoa que viva no século 21 sabe disso, mesmo que hoje a burocracia seja colorida e tenha a forma de aplicativos e senhas.
Suas viagens exploratórias, e a capacidade de sobrevivência dos camponeses o levaram a aderir ao movimento populista russo (narodnik), que pregava a "ida ao povo" como forma de aprender a viver nas suas comunidades (mir) e, ao mesmo tempo, ajudá-lo a sair do analfabetismo, da pobreza e da ignorância. Os narodniks foram uma importante matriz da Revolução Russa. Evidente que o resultado dessa "ida ao povo" foi ambivalente para esses jovens. Muita inspiração e muita agonia.
Nos seus embates com os marxistas e bolcheviques, Kropotkin identificou neles o gozo pela hierarquia burocrática e previu, assim, o fracasso da Revolução Russa.