Estátua de Ain Ghazal, uma das mais antigas representações do homem, datada entre 8.000 A.C e 7.000 A.C.| Foto: Reprodução
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Se pegássemos uma máquina do tempo e chegássemos ao sítio arqueológico de Ain Ghazal (na atual Jordânia), cerca de 7.500 atrás, e perguntássemos aos seus habitantes (na língua deles) por qual razão eles desenterravam seus mortos, cortavam suas cabeças e espalhavam pedaços dos corpos pelo local em que viviam, provavelmente, não entenderíamos nada da resposta que eles dariam. Por quê?

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Uma hipótese para alguns arqueólogos do Neolítico (grosso modo, período entre 6.000 e 12 mil anos atrás) é que nossos ancestrais deliravam grande parte do tempo.
"Delirar" aqui significa viver numa esfera em que o mito se mistura com a realidade, ou melhor, a realidade é o mito no plano da percepção do mundo. O cérebro não faz diferença entre o que é mito e o que é realidade.

Não há fronteiras entre mundo cotidiano natural e o sobrenatural. Não há diferença entre a percepção da realidade cotidiana e estados alterados de consciência.

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Ou, como diria o psicólogo canadense Jordan Peterson, os objetos em si (visão científica) estão imersos nas narrativas dramáticas dos mitos.

Fazer essa diferença é experiência novíssima na espécie e pode acabar a qualquer momento, além de não ser majoritária ainda hoje.

O Sapiens tem sido uma espécie delirante. O pensamento racional e científico é um evento muito recente e não necessariamente bem adaptado.

Qualquer rachadura na parafernália capitalista e tecnológica, voltamos aos delírios do Neolítico.

A ausência de fronteira clara entre o cotidiano concreto (para uma mente racional e científica moderna) e o estado onírico, extático, ou delirante, é perceptível nos achados arqueológicos neolíticos no Oriente Médio (e em outros locais).

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Nesses achados não dá para dizer se as estruturas encontradas seriam habitações ou santuários. Ambas as funções estão misturadas. Morava-se no mesmo lugar em que se fazia cultos. Morava-se onde se enterrava e desenterrava os seus mortos. Afinal, para que desenterrar os mortos?

Uma obra consistente (e controversa) para quem se interessa pelo assunto é "Inside the Neolithic Mind", de David Lewis-Williams e David Pearce (Thames & Hudson, Londres, 2005).

Amostras muito antigas de sangue humano misturado com sangue animal, da Índia à Turquia, em estruturas construídas com características de residência e santuário ao mesmo tempo, revelam a possibilidade de sacrifícios humanos e de animais dentro da própria casa, o que reforça a tese da não separação entre o que chamaríamos de templo religioso e residência "privada".

A espécie viveu sempre atada ao passado ancestral, a obsessão pelo futuro veio nos últimos 200 anos.

A rigor, os últimos 2.500 anos de racionalidade foram bem atípicos num universo de 400 mil de existência do Sapiens.

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Portanto, vá devagar com o santo porque nós modernos somos aquele tipo de neófito que já quer se sentar na janelinha.

Outra obra essencial aqui é "La Cité Antique", do historiador francês do século 19 Foustel De Coulanges (Flammarion, edição de 1984).

Ele trata da religião doméstica dos cultos aos ancestrais das famílias na Grécia e Roma neolíticas e mesmo no período antigo. As fontes são muitos dos textos dos antigos sobre seus costumes herdados de milênios antes deles.

Caso o filho mais velho não fizesse oferenda de comida aos mortos, que permaneciam "vivos" nos túmulos dentro da própria casa, esses mortos virariam demônios a atormentar os vivos. Cada pessoa era um pequeno elo numa cadeia de ascendentes e descendentes ao longo do tempo natural e sobrenatural.

O vínculo entre ancestrais e vivos era essencial. Filhos eram um ativo na condução da eternidade dos mortos. Hoje, os filhos são um passivo, por isso ninguém mais quer tê-los.

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Mesmo para aqueles que creem na eternidade, esta não depende de filhos. Mesmos os mortos passaram a ser vistos, por "especialistas", como agentes de apodrecimento do solo. A moda é cremar todo mundo. Túmulos são incorretos.

Enfim, a mente racional é recente em nós e pode desaparecer a qualquer momento. A razão é um ônus. Seu delírio particular é o mito do progresso.