Falamos muito de polarização política hoje em dia. Arrisquemos uma hipótese descolada do óbvio – a polarização é um atavismo da espécie.
Este atavismo comprovaria outra hipótese anterior, com a qual compartilho uma certa simpatia, segundo a qual somos uma espécie pré- histórica desfilando bolsas Prada e iPhones, mas que permanecemos interiormente aqueles que conviveram com os neandertais – com cuja extinção ajudamos.
Se esta hipótese tem validade, a polarização nada mais é do que a inércia mental da humanidade buscando reafirmar o dualismo mítico do bem contra o mal. Neste sentido, quem polariza são os que mais permanecem presas do atavismo ancestral – redundância proposital.
Paul Carus, no seu clássico "The History of the Devil", primeira edição em 1900, foi um daqueles liberais que navegaram pela história das religiões.
Alemão reformado, mudou-se para os Estados Unidos por considerar a Europa conservadora demais e lá fixou residência, casou-se com uma milionária e passou a vida fazendo o que queria: estudar religiões e suas filosofias. Formou-se em Tubingen, Alemanha, e se especializou em estudos de religiões comparadas.
Carus definia mitologia como uma forma popular de metafísica. Definição assaz elegante, diga-se de passagem. Típico intelectual da sua época, acreditava no aperfeiçoamento da espécie, ainda que de forma mais comedida do que os marqueteiros que dominam o debate público hoje em todos os níveis. Nem a psicologia escapa do marketing.
Uma diferença cabal entre ele e nossos otimistas de hoje em dia é que Carus possuía um repertório gigantesco para sua época, o oposto dos marqueteiros contemporâneos que, quando muito, alimentam sua erudição com pérolas do Instagram ou Twitter.
Carus crê na teoria – bastante consistente para muitos arqueólogos atuais – segundo a qual a humanidade adorou divindades do mal, antes de adorar divindades do bem, e oferece dados que sustentam sua teoria.
Sua visão de religião é típica da sua época – as religiões evoluíram dos selvagens (termo usado por ele) em direção à superioridade das religiões que se transformaram em filosofias, mas esse detalhe datado para os estudos de religião de hoje não afeta aquilo que interessa em sua obra.
A adoração do mal teria surgido por conta do fato de que somos vulneráveis à natureza e às contingências – o óbvio e ululante.
Sacrificar crianças, virgens, jovens em geral ou animais era um modo de aplacar a violência do mundo natural e seus agentes demoníacos com sangue fresco. Ele descreve rituais sacrificiais humanos que deixariam as belas almas forjadas no marketing de bancos em crise existencial.
O dualismo seria aqui um avanço. Ele situa o surgimento do dualismo na Pérsia, pelas mãos do mítico profeta Zoroastro, século 7 a.C. O dualismo significa que há um combate cósmico contínuo entre o bem e mal. O monoteísmo antigo, que não nasceu entre os israelitas, mas antes deles em diversos locais do Oriente Médio, tenta se livrar do dualismo, mas ele volta, e o Demônio é um dos casos.
E a polarização nisso tudo? A polarização seria, digo eu, uma forma desse dualismo atávico em que cada um dos polos se vê como o representante do bem e o outro como o representante do mal. Neste sentido, quem acha que está berrando pérolas nas redes, ou na Paulista, nada mais é do que objeto dessa obsessão ancestral da espécie.
A polarização especificamente política não é nova. Seu surgimento se dá devido a violência da modernização industrial capitalista e as rupturas que ela causou, criando aqueles que abraçaram de alguma forma essas rupturas (os liberais e os socialistas) e os que temem essas rupturas (os conservadores). As redes sociais apenas deram lugar à falta de educação e molecagem como método.
Portanto, você, meu caro polarizado, que berra nas ruas e nas redes, reconheça-se como um caso de atavismo da espécie, espécie essa que se arrasta pelo mundo produzindo mitologias, inclusive políticas, que nada mais são do que formas empobrecidas de metafísica. Você é a pura inércia em ação. Sua substância é a violência.
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