Todos precisamos de alguém que um dia tenha piedade de nós. A ideia, presente em orações na tradição abraâmica, fala de uma necessidade profunda de encontrarmos o perdão como forma de libertação. A misericórdia é um pilar essencial, apesar de menosprezada pelas modas do mundo, para a experiência possível da beleza na vida.
É justamente esta a beleza da qual nos fala Dostoiévski (1823-1881) quando ele diz que a beleza salvará o mundo.
Sei bem que ideias como essa estão longe do ethos do coaching, que assola nosso mundo, típico da assertividade boçal como modo de estar diante dos outros. Uma forma sutil de felicidade nasce ali, onde nos reconhecemos como seres assolados pela infelicidade e pelo fracasso, seja ele moral, econômico ou mesmo fisiológico, parada final da condição humana.
É longa a linhagem de autores que transitam por esse vale de sombras. Entre eles, um dos maiores na descrição dessa travessia, foi o francês Victor Hugo (1802-1885), na sua famosa obra "Os Miseráveis".
O título, preciso, encontra sustentação seja na fenomenologia da miséria do capitalismo selvagem — aquele mesmo que agora se traveste de ovelha pelas mãos da publicidade — ao longo do século 19 europeu, seja na experiência individual de alguém que se reconhece mergulhado nessa miséria exterior e interior.
A história narra a saga de Jean Valjean, miserável, ladrão, embrutecido, que encontra, inesperadamente, o perdão pelas mãos de um bispo.
Mesmo tendo sido tratado bem pelo bispo — janta e dorme em sua casa —, Valjean rouba uma prataria da sua casa na manhã seguinte e foge. Na sequência, policiais o prendem na rua, por desconfiar que um miserável como ele não poderia portar objetos de tal valor.
Valjean mente dizendo que o bispo havia dado a ele, de presente, aquela prataria. Os policiais, então, o levam a casa do bispo para verificar sua história improvável. A cena seguinte se constituirá no início da grande transformação moral pela qual passará o personagem Valjean.
O padre confirmará a narrativa mentirosa de Valjean, dizendo que, sim, havia dado aquela prataria de presente para o ladrão. Além disso, antes de sua partida, como homem livre, o bispo "lembra" a Valjean que ele havia esquecido os castiçais que ele também lhe tinha dado de presente.
Com aqueles castiçais, como diz o próprio bispo, Valjean recupera sua liberdade diante do mal que o assolava. Não só diante da possibilidade, de novo, de ir para prisão, mas também da sua vida sem esperança. O personagem central de "Os Miseráveis" se transformará, assim, numa luz no mundo, assim como as velas que são sustentadas por castiçais.
O outro protagonista da história, o obsessivo policial Javert, que persegue Valjean, desconfiando dele o tempo todo — Valjean assume uma nova vida e se transforma num homem rico e honesto — fará o contraponto, representando a diferença entre a justiça e o perdão, essencial para a economia moral do drama.
Javert não entende o que é a misericórdia porque está preso na noção de simetria, típica da justiça: criminosos como Valjean não merecem o perdão. Entretanto, a misericórdia nada tem a ver com a ideia de justiça, pois está acima dela.
Não que a justiça não seja necessária ao mundo. Mas, enquanto a justiça, na sua concepção original grega, significa "dar aquilo que cada um merece", o perdão está distante da ideia de merecimento enquanto tal. É, justamente, o não merecimento que encanta na misericórdia. Este traço de caráter está no centro da personalidade do personagem histórico conhecido como Jesus Cristo.
Dito de uma forma contemporânea e banal, a misericórdia, o perdão ou a piedade nada têm a ver com a ordem meritocrática. Não transita pela economia dos méritos, como diria Santo Agostinho (354-430).
A felicidade que nasce do encontro com a piedade é de uma ordem estranha à lógica dos resultados e das métricas. Ela pertence à família dos milagres.
O vínculo entre misericórdia e felicidade é uma das maiores ausências hoje na literatura de baixa qualidade sobre felicidade à disposição dos infelizes.