Numa terça-feira de manhã, em agosto de 2008, almoçava com meu filho perto da Escola Paulista de Medicina. Ele, residente em clínica àquela altura; eu, professor e pesquisador de um projeto da Fapesp coordenado pelo meu amigo e colega Dante Gallian, professor de história da Unifesp.
Naquele momento, meu celular tocou – era Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, me convidando para assinar esta coluna da Ilustrada às segundas-feiras. Marcamos para apertarmos as mãos na sexta-feira daquela mesma semana. Fui à Redação e conversarmos. Volto já a essa conversa.
Quando desisti da carreira médica para me tornar filósofo e fui à graduação de filosofia na USP, eu tinha um projeto muito claro na minha cabeça. Queria participar do debate público –e não só dar aula em universidade, o que também sempre quis fazer.
Para participar do debate público, era necessário chegar à mídia. Para mim, no final dos anos 1980, chegar à imprensa significava escrever na Ilustrada. Era a única forma de ser relevante na discussão de ideias. Otavio realizou uma parte importante do meu projeto de vida profissional ao me convidar para assinar esta coluna semanalmente.
Mas sobre o que falamos naquela sexta-feira à tarde, em agosto de 2008? Otavio foi muito claro quanto à razão de me propor o espaço para escrever. Cito suas palavras literais: "Eu quero que você quebre o coro dos contentes".
Evidentemente ele já me conhecia, lera meu livro sobre Dostoiévski. O então editor do caderno Mais!, Alcino Leite Neto, mediou nossos primeiros contatos antes daquele encontro que tivemos.
Quebrar o coro dos contentes é algo que faço até hoje. Cumpro a promessa feita a Otavio em 2008.
Muito antes de o debate chegar à lata de lixo em que estamos, sabia-se muito bem –Paulo Francis, por exemplo, apontava isso em sua coluna na Ilustrada e depois em seus textos no Estadão– que havia um consenso petista de fundo nas Redações. Esse consenso vinha das universidades, onde muitos dos professores acabavam por ser chefes de Redação de muitos de seus alunos.
Mas esse consenso era maior do que simples simpatia partidária. Era uma visão de mundo que implicava, por exemplo, uma ignorância atroz, que segue até hoje, com relação a autores que não transitassem, grosso modo, pela trindade Marx, Foucault ou Bourdieu.
Se você perguntasse para um jornalista de onde vinha a tradição conservadora britânica e desse a ele duas opções, cristianismo ou ceticismo, a imensa maioria responderia a opção religiosa. Quando, na verdade, o ceticismo está na base daqueles que duvidam de utopias políticas. Isso é uma tradição de pensamento sólida e sofisticada, que tem uma bibliografia sustentada.
O coro dos contentes também era toda uma gama de atitudes acerca de pautas comportamentais, o que, em especial, piorou muito de lá para cá. O medo que hoje assola as pessoas era menor dez anos atrás. Com as redes sociais, a inquisição se tornou total.
Para além do fato óbvio de que as pessoas devem ser iguais perante a lei, viver como quiserem, se vestir como quiserem, transar com quem quiserem e ter oportunidades profissionais em todos os lugares, a verdade é que hoje todo mundo quer provar, quanto mais melhor, que não é transfóbico, racista, homofóbico ou algo semelhante.
A monotonia das boas intenções políticas cansa qualquer pessoa com um mínimo de gosto intelectual e derruba a qualidade do debate.
Um traço do coro dos contentes –que Otavio bem sabia– é a suposição de santidade por parte dos integrantes desse grupo. Você precisa achar tudo lindo, senão logo se transforma em um escroto bolsominion. Hoje é mais perigoso quebrar o coro do contentes.
Otavio me dizia coisas como "lembre que tem alguém que quer entender o que você escreve". Na universidade, querer ser compreendido por quem nos lê é para os fracos. "Repita frases, palavras, jornalismo é muito redundância, o leitor é efêmero", ele dizia. "E cuidado com o sucesso, ele pode destruir a sua inteligência." Otavio era de uma elegância ímpar. Obrigado à Folha, sempre.