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Façamos hoje um exercício de sociologia da nossa realidade na pandemia para além do que gostaríamos que fosse essa realidade. Pensemos no binômio Brasil e lockdown como objeto de reflexão.

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Em tempos de estupidez endêmica nas redes sociais, deixemos claro que não duvido do lockdown como medida epidemiológica em si. O que esse breve exercício de análise sociológica faz é duvidar da viabilidade logística do lockdown no Brasil.

Qual o dilema de fundo da gestão responsável da pandemia no país? O dilema da gestão pública aqui é: até onde empurrar a imitação da Europa? Não somos África o suficiente pra não saber nada e não poder fazer nada, mas temos favelas o suficiente pra afogar a "ciência europeia da epidemia" em nossa miséria. É trágico que existam vidas, inclusive do corpo médico, nesse impasse.

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Propor lockdown no Brasil não seria brincar de Nova Zelândia na favela? Ameaçar a população com lockdown não seria uma forma de nos punir por mau comportamento?

Ou propor lockdown no Brasil seria uma peça de marketing político?

Pedir lockdown aqui parece coisa de gente que está bem segura em casa, no sítio ou na praia, cercada de livros, wi-fi de qualidade, séries de TV, mesmo que sem sexo pois os frouxos estão saindo do armário: tem gente com medo de beijar de língua a própria mulher. O negócio agora é refletir sobre os ganhos imunológicos da masturbação. O isolamento trabalha a favor da infantilização e do narcisismo endêmicos no mundo.

Façamos um recuo metodológico. Epidemiologia é uma área da medicina que tem três pilares. Modelos estatísticos (1), fisiopatologia do agente infeccioso e ferramentas de imunidade (2) e ciências sociais (3). A epidemiologia é uma ciência social.

Uma epidemia segue os contornos sócio-econômicos de um país. Comparar o Brasil com a Nova Zelândia é como comparar a Lua com Marte.

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A população da Nova Zelândia não chega nem perto da torcida do Coríntia. Talvez, da Portuguesa.

O Brasil é uma Belíndia. Uma Bélgica cercada por uma Índia. Pois bem, os belgas do Brasil brincam de pedir lockdown porque não enxergam um palmo adiante dos seus narizes seguros nos sítios, nas casas de praias e mesmo em suas casas seguras em São Paulo.

Uma trabalhadora das classes mais vulneráveis me perguntou: "Professor, quem é esse americano, tal de Lockdown, que querem trazer pro Brasil?". Pois bem, proponho aos inteligentinhos e bonitinhos, com suas receitas de brócolis, explicar pra nossa trabalhadora sem Netflix quem é esse tal americano Mr. Lockdown.

Sempre soubemos que a elite brasileira é alienada, em grande parte. E, por elite, me refiro a faixa da classe média alta para cima. Com ou seu PhD, com ou sem russos, falando inglês ou não falando. Nessa epidemia, a alienação aparece de forma evidente, como no caso de pedir lockdown.

Vejamos. Que tal desviar parte do contingente de policiais (já sobrecarregados no dia a dia), que têm que cuidar para que carregamentos de alimentos e remédios não sejam roubados, para checar quem pode ou não sair de casa?

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Que tal desviar parte do contingente de policiais, que tem que impedir que roubem bancos com a grana do auxílio emergencial, para checar se você é ou não médico ou jornalista? Que tal desviar parte do contingente de policiais, que cuidam para que o narcotráfico não expanda ainda mais seus negócios, para checar se você precisa ou não, de fato, levar seu pet ao veterinário?

Que tal a polícia prender todo mundo que estiver andando na rua e fazer uma aglomeração na delegacia?

Caros inteligentinhos, muitos brasileiros saem para rua porque suas casas são uma aglomeração maior do que a rua, saem porque, se não, morrem de fome. Saem porque não têm nenhuma razão para confiar nas suas autoridades nem na sua elite pensante.

Um dado histórico final: na Idade Média, muitas cidades emparedavam famílias inteiras quando um dos familiares tinha peste. As pessoas não melhoram em epidemias. Ficam piores. Mentem mais e se acomodam a miséria ética.

Agora, a miséria cobra sua conta, enquanto os políticos usam a epidemia para suas carreiras.

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