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O Ano-Novo tem algo de sagrado. As pessoas sentem que recebem uma nova chance para refazer a vida de uma forma melhor. São idiotas por isso? Não. O calendário – o nosso é uma mistura de cristão com romano pagão – carrega em si o nascimento de Jesus Cristo, Deus para os cristãos.
É o caráter da contagem crescente dos anos, misturada com meses e dias que se repetem, que produz a sensação de algo sagrado, não o fato de ser uma contagem cristã. Mesmo descrentes podem sentir esse efeito de renovação do Ano-Novo. A cada Ano-Novo, se volta ao começo da contagem dos meses, e aí está o efeito de renovação. Volta-se ao início de novo.
O que é o sagrado? Uma das definições mais operacionais é a do historiador de religiões comparadas romeno Mircea Eliade (1907-1986). O estudo das religiões comparadas se caracteriza por identificar semelhanças entre as diversas religiões históricas, apontando estruturas que se repetem. Uma dessas estruturas é o que ele chama de dialética do sagrado e profano – O Sagrado e o Profano, da editora Martins Fontes. É dessa definição que falamos hoje.
No Ano-Novo, nos unimos aos ancestrais e contemplamos algo maior do que nós
Ao somar anos, o calendário aponta para um avanço linear. Na Antiguidade cristã e na Idade Média, para quem sabia em que ano estava, o avanço do calendário implicava a ideia da chegada do fim do mundo e o julgamento divino – ideia comum em muitas religiões: fim de mundo, julgamento dos deuses. Mas o caráter repetitivo, cíclico, é que dá a sensação de recomeço, renascimento. Muitas religiões associaram ao longo do tempo esse caráter cíclico de uma vida que se repete e se renova às estações do ano que se repetem infinitamente.
Por isso, não são idiotas as pessoas que se sentem renovadas no ano novo, apesar de 1.º de janeiro poder cair numa quarta ou quinta de uma mera semana. Qual é a diferença, afinal? A diferença é o caráter sagrado que o ciclo estabelece. Sagrado é poder para Eliade, poder criador, transformador, aniquilador e poder de permanência. Profano é o que está à mercê do poder sagrado. Você sai com um santinho ou com uma pedra de cristal na bolsa porque um representa uma pessoa supostamente poderosa por estar mais perto de Deus; a outra, uma pedra que tem o poder de durar muito tempo, ao contrário de você, frágil e que dura pouco.
O caráter cíclico do recomeço do ano novo remete ao poder do tempo sagrado que permanece no horizonte se repetindo ao longo do tempo cósmico – o universo nos parece sagrado porque é imenso e misterioso. Ainda que seja mera convenção, ela é acompanhada de festas, rituais, roupas especiais, altera a contagem dos dias nos negócios, implica prazos jurídicos, enfim, tem uma eficácia simbólica. O homem é um animal simbólico, já dizia o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945).
O tempo sagrado altera a percepção de qualquer dia da semana para quem acredita. Natal, Ano-Novo, Dia do Perdão judaico, Ramadã islâmico, para dar alguns exemplos. Datas que se repetem e dão a chance às pessoas de pensarem a si mesmas num ciclo maior da vida e agir sobre ele. Por isso, muitas vezes, essas datas implicam a suspensão das atividades cotidianas comuns – profanas, banais – para que as pessoas se dediquem ao efeito simbólico de um tempo que transcende o cotidiano. O fato de tudo ser uma invenção humana, do ponto de visto histórico, social, filosófico ou psicológico, só reforça a percepção da função poderosa da criação de calendários sagrados.
Claro que, para quem crê, há algo de sobre-humano nisso tudo. Você pode ser uma pessoa que não crê em religião histórica nenhuma e sentir que o universo “muda” com o Ano-Novo e abre uma nova era de energias para você recomeçar num tempo eterno como o próprio universo. Quando essas datas são esquecidas, elas perdem a eficácia, como no caso de judeus assimilados que não interrompem seu dia a dia para as datas sagradas do judaísmo.
A força do recomeço eterno da contagem dos dias é tão forte que mesmo quem não faz rituais de ano novo sente a força dessa data. Neste momento, nos unimos aos nossos ancestrais pré-históricos, contemplando algo maior do que nós.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos