Uma Constituição criada por decreto? Sim, mas não sem ser referendada, passando pelo crivo das paróquias; ato que nenhuma outra constituição do Brasil passou. Foi inovadora na separação de poderes e nos avanços de direitos fundamentais, pois garantia, entre outros vários direitos do homem e do cidadão, o direito à propriedade, à justiça independente, à liberdade de expressão, de imprensa, de opinião, de ir e vir, de defesa, de processo legal e de, pasmem, o direito de eleger e remover seus representantes.
E, como se não bastasse, definia quem era cidadão. Sim, cidadão, e não súdito, como muitos historiadores gostam de desinformar.
Dia 25 de março comemoramos os 200 anos da primeira constituição do Brasil, a de 1824. Um breve histórico pode demonstrar que a constituição que fundou o Brasil como país é digna de orgulho para todos os brasileiros.
Defensor perpétuo da pátria: Nos meses que antecederam o grito do Ipiranga, dom Pedro I decide contrariar as ordens das cortes portuguesas e permanecer no Brasil. Esse foi o Dia do Fico, um primeiro ato de desobediência. Os ministros brasileiros liderados por José Bonifácio decidiram então declarar que dom Pedro era mais que um regente para fazer frente às ameaças que certamente viriam de Portugal. A partir daí veio o título a ele conferido como Defensor Perpétuo do Brasil. Possivelmente o título mais bonito que já existiu em nossa história e que não foi conferido a nenhum outro brasileiro senão seu próprio filho, Pedro II.
A independência: Ao proclamar a independência, dom Pedro I rompeu não só com a ideia de Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, mas também com a constituição portuguesa, que lhe garantia poder institucional no Brasil. Nos dois anos seguintes ele ficou à mercê dos brasileiros que, felizmente para ele e para o Brasil, o aclamaram imperador. Felizmente? Sim, felizmente pois Pedro era constitucionalista por convicção e logo convocou uma assembleia constituinte antes mesmo de obter o reconhecimento internacional da nossa independência.
Pedro sabia que a governabilidade, a estabilidade e mesmo o próprio reconhecimento do Brasil independente só viria com a arquitetura de um Estado moderno. Diferente de seu irmão, dom Miguel, que era absolutista convicto e que promoveu golpes contra as tentativas de criar novas constituições para Portugal, Pedro queria fazer a transição do modelo tradicional para o modelo liberal; e estava disposto a ir para a guerra contra seu irmão por isso.
Convocação da Constituinte: antes mesmo de ser proclamada a independência do Brasil, era gestada a organização política que contemplaria uma carta magna própria do país. A sociedade da época, representada por diversas entidades civis e religiosas, organizava-se em oposição às Cortes Portuguesas, que queriam concentrar as decisões comerciais e administrativas de volta em Portugal. Isso causaria um enorme retrocesso para o Brasil.
“O remédio estava naturalmente indicado: era a convocação de uma Constituinte Brasileira. O movimento partiu das lojas maçônicas, verdadeiros clubes políticos que não possuíam ainda a válvula de uma assembleia que eles dominassem e inspirassem”.
O trecho, do historiador do século 19, Manuel de Oliveira Lima, assinala o marco histórico, que teve sua assembleia convocada apenas um ano após a independência do Brasil. Importante ressaltar que o reconhecimento do Brasil como país independente pela comunidade internacional só se deu em 1824 e por Portugal em 1825, depois de consolidada a nova carta constitucional.
Salvaguardada a unidade nacional e em fase de consolidação da independência, pois mesmo um ano depois de proclamada, algumas províncias relutavam em aderir à causa imperial, dom Pedro I reuniu seu conselho de ministros e deliberou a convocação de uma constituinte. José Bonifácio esperava que um conselho de procuradores pudesse vir antes de uma assembleia constituinte, mas dom Pedro I substituiu o conselho de procuradores, criado em 1822, antes da independência, por um conselho de Estado que definiria as bases da nova Constituição, abrindo precedente para a convocação de uma constituinte.
A verdadeira razão do fechamento da constituinte: a abertura da Assembleia Constituinte ocorreu dia 3 de maio de 1823 e sua dissolução em 12 de novembro do mesmo ano, fato que é alimento de diversas narrativas históricas falsas. De fato, havia o interesse dos constituintes de remover quase todos os poderes do imperador, conflitando com seu interesse de manter o Poder Executivo. No entanto, o estopim para o fechamento foi algo mais sério: dom Pedro e seu gabinete, formado em julho do mesmo ano, procuravam o apaziguamento das relações com os portugueses no Brasil e em Portugal, uma vez que Portugal ainda não havia reconhecido o Brasil independente. No entanto, os constituintes, sedentos por revanche, contaminaram diversos artigos da nova carta com termos radicais, por exemplo, instituindo a perseguição e o banimento da presença portuguesa no país, o que certamente significaria guerra.
A dicotomia ficou clara: de um lado, uma assembleia constituinte com inspiração na Revolução Francesa, fortemente inclinada a redigir de forma a atender grupos revoltosos locais; de outro, o desejo de um estadista em consolidar a base jurídica do novo país e conquistar o reconhecimento e legitimidade internacional.
Venceu o imperador e, ao contrário do que dizem as falsas narrativas, venceu a Constituição de 1824. Sim, a constituição venceu, pois após o fechamento da constituinte o trabalho foi retomado pelos conselheiros do imperador. Uma vez concluído o texto, foram enviadas cópias às paróquias de todo o Brasil para aprovação. Todas responderam positivamente, e só então dom Pedro outorgou a nova carta constitucional em 25 de março de 1824.
Esse detalhe do referendo nas paróquias é convenientemente omitido pelos “historiadores”, mas é um detalhe importante, pois os habitantes das municipalidades eram administrados pelas paróquias da Igreja Católica (uma das razões pragmáticas da Igreja estar incluída na carta constitucional).
Poder moderador e parlamentarismo: o poder moderador foi uma evolução do modelo criado por Montesquieu no seu livro “O Espírito das Leis”. Neste livro, Montesquieu argumenta a favor de um monarca esclarecido que exerceria o Poder Executivo, mas dividiria o poder com outros dois poderes concorrentes, o Legislativo e o Judiciário.
Porém, logo na sequência da Revolução Francesa, surge um político francês, Benjamin Constant (não confundir com o republicano brasileiro do século 19), que inovou ao ser convincentemente a favor de um distanciamento maior do monarca em relação ao Poder Executivo, cabendo-lhe somente o poder de moderar, caso os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) perdessem a harmonia. O Poder Executivo, nesse modelo, deveria ser exercido pelo presidente do Conselho de Ministros. Essa nova instituição do poder de moderar foi introduzida na Constituição de 1824, a chave para estabilizar o jogo político durante toda sua vigência.
Vinte e três anos depois, Pedro II fez o Decreto Imperial de 1847, removendo-se da função de Poder Executivo e entregando-o ao presidente do Conselho de Ministros, o que na prática viabilizou o parlamentarismo no país. Esse fato também é convenientemente “esquecido” pelos “historiadores”, pois mata a falsa narrativa de que o Poder Moderador era ditatorial.
Esses e outros temas são extensos e dificilmente conseguirei tratar em um só artigo com a devida propriedade. Talvez tenhamos que abordar o assunto mais profundamente no contexto do século 19 em um livro. O que acham?
Enquanto isso, aos iniciados fica essa modesta memória de uma obra constitucional que materializou os pensamentos virtuosos vigentes na época, criada por verdadeiros patriotas e que ajudou nosso país a se tornar um exemplo institucional nas Américas. Conheça o texto constitucional de 1824 na íntegra.
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