Manifestação pró-impeachment na Avenida Paulista, em dezembro de 2015.| Foto: Agência Brasil
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Têm sido comuns os pedidos de uma receita para reagirmos ao atual estado de exceção que se instalou no Brasil. Posso testemunhar, por experiência própria, os fatos que entre os anos de 2014 a 2016 elevaram as ações de mobilização popular ao patamar de instituição da voz que vem da sociedade. Foram três anos de mobilização constante, focada, pacífica e, acima de tudo, organizada. Antes de dizer o que fazer, gostaria de dar o crédito a quem fez acontecer. 

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Os movimentos de 2014 tinham várias denominações. E quem eram os expoentes que se mobilizaram e conseguiram que a forma se agigantasse numa oposição praticamente anônima para o grande público? Eram políticos? Não! Eram partidos? Não! A iniciativa, a organização e a liderança partiram de profissionais liberais, executivos, pequenos e grandes empresários, religiosos, aposentados de todos setores, famílias inteiras; pessoas comuns da sociedade civil, inclusive eu, apenas um ativista. 

Foi um período de grande despertar. Na época, estávamos todos abrindo um caminho para uma força política que estava entrando no mapa político, uma verdadeira revolução social -  foi o nascimento da sociedade civil organizada na política brasileira. 

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O levante da sociedade civil

Ao contrário dos “movimentos populares”, organizados e comandados pelos partidos de esquerda, a sociedade civil não tinha representação política e os diversos movimentos sabiam que não poderiam contar com parlamentares ou burocratas como aliados, afinal eles faziam parte do problema. Também sabiam que a arruaça, a depredação, a queima de pneus, os atos de depravação ou qualquer método violento era típico da esquerda e ninguém dos grupos que se formou tinha perfil criminoso. O caminho certo era o estudo, a organização, a ação coordenada e muita tentativa e erro – demandas em sintonia com o perfil de quem compunha os movimentos.  

Compartilhávamos vários ensinamentos contidos em livros e vídeos de mobilização pacífica e analisávamos os levantes que aconteceram na Ucrânia, na Sérvia e no Egito nos anos anteriores. Discutíamos os movimentos de esquerda, mestres do método de Gramsch, táticas de Saul Alinsky e filosofávamos sobre os ensinamentos de Olavo de Carvalho. No entanto, na hora de colocar em prática, a ação era influenciada por outro pensador: Gene Sharp. 

O caminho de Sharp

Gene Sharp estudou diversos levantes populares contra ditaduras nos últimos 200 anos e, de forma pragmática, escreveu exaustivamente sobre o tema traçando linhas de ação de fácil compreensão e aplicação. Embora Sharp adote a linguagem da “esquerda democrata”, é inegável que as estratégias elaboradas por ele são comuns e transferíveis universalmente na resistência contra as ditaduras. Ele foi um dos muitos autores que estudamos no período que antecedeu o impeachment de Dilma. Sharp morreu aos 90 anos, em 2018, e deixou quatro linhas gerais e estratégicas que resumem os passos para o planejamento de mobilizações, em seu livro “Da Ditadura à democracia”:

  1. Deve-se fortalecer a própria população oprimida em sua determinação, autoconfiança e habilidades de resistência;
  2.  É preciso fortalecer os grupos sociais e instituições independentes do povo oprimido;
  3. É preciso criar uma poderosa força interna de resistência; e
  4. Deve-se desenvolver um grande e sábio plano estratégico para a libertação e implementá-lo com habilidade.

Este último item, em especial, precisa ser retomado. A prática de planejar, organizar e nos mobilizar, com constância, foi responsável por corroer os pilares de apoio ao governo Dilma e legitimou as decisões de impeachment pelo Congresso Nacional em 2016. Deputados e senadores perceberam que não se tratava de um movimento fugaz e que a população não iria arredar pé das ruas. Foram necessários três anos para que se atingisse uma maioria que, aproveitando-se de um impasse com o governo, passou a defender a vontade do povo e fizeram pautar o impeachment. 

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O nosso caminho

Mas cada experiência é diferente. Nem todas as sugestões de Sharp eram adequadas naquele momento, enquanto que outras, ainda não usadas, seriam adequadas hoje. Com a avaliação da experiência de 2014 a 2016 em contraste com nossa necessidade em 2024, proponho uma lista para a luta contra a ditadura no Brasil nos próximos tempos: 
1) Movimento exclusivo da sociedade: recorrer a políticos e partidos para ajudar a organizar, acaba por partidarizar as ações e deslegitima o movimento.  Para os políticos, há ganho de popularidade, mas pode levar a desgaste e cassação - o que será visto como perda para o movimento – evite políticos de estimação.

2)Primeiro Passo - Objetivos e Táticas: definir claramente o objetivo da mobilização e as táticas para atingi-los. Apoiar ou rejeitar políticas públicas, mudanças constitucionais ou decisões de governantes são aceitáveis.  Qualquer ataque a instituições públicas ou a seus agentes, pode ser considerado ato inconstitucional ou ilegal e pode gerar reações que atrasam o movimento.  Tempo: a maioria das mudanças políticas não vêm de uma só mobilização pontual, portanto, os planos têm de prever fases, ter agenda e novas ações.

3) Foco nas mensagens: Poucas mensagens, coesas, sem variações e sem generalizações; a mensagem tem que ser clara, com resultados mensuráveis (aprovação de um projeto de lei ou mudança constitucional, por exemplo) e com condicionantes em caso de não gerar o resultado esperado.

4)Foco no alvo: Nomeie um alvo do qual se espera uma reação. Atualmente, por exemplo, acredito que a pressão tenha que ser sobre os políticos mais numerosos e mais fracos: notadamente os parlamentares do Centrão. Eles são maioria, não têm visibilidade em rede social, possuem dependência de recursos públicos para se eleger e sempre traem a população para atender o lado quem paga mais, isto é, o governo;

5) Democratizar ao máximo:  Os líderes do movimento devem refletir o tipo de liderança que se espera na política e no Estado. Como os ativistas são voluntários, deve-se definir tudo em voto de grupo - todos os objetivos e ações a serem seguidas -  todas as variáveis de contra-argumentação e reação devem ser previstas;

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6)Limitar oportunistas no movimento: movimento formado em torno de personalidades cria líderes populistas. O ideal é buscar movimentos cujos líderes não irão se candidatar, pois limitam os oportunistas que querem usar o movimento como plataforma eleitoral ou de promoção pessoal. Isso não significa que os ativistas não possam se candidatar, ao contrário, devem, mas o movimento deve ser o protagonista e não servir à personalidade e ambição dos membros;

7) Ter resistência, consistência, disciplina, frequência: não necessariamente nessa ordem, o principal é ter e manter o foco no objetivo e na mobilização até que o objetivo seja atingido; manter plano e agenda de futuras mobilizações; criar um mínimo de organização formal para manter a disciplina do grupo; fazer reuniões de discussão semanal ou, no mínimo, duas vezes por mês;

8) Lideranças e porta-vozes: Não se enganem – fazer ativismo político é fazer política, só que não de forma eletiva. A política é quem escolhe o político e nem todos que querem ser políticos conseguem. É importante reconhecer lideranças naturais da sociedade para garantir o engajamento de mais pessoas de forma efetiva. Por isso, é uma arte não afastar os poucos com talento que agregam e ao mesmo tempo impedir que os oportunistas comandem o movimento.

9) Aproveitar notícias: governo ditatorial não deixa ninguém em paz e está sempre agindo contra algum aspecto da sociedade. Portanto, é preciso aproveitar as notícias ruins que surgem para facilitar a mobilização. Mobilizar sem fato gerador de indignação recente é possível, mas é mais difícil;

10) Não caluniar ou difamar: A crítica pública do movimento deve ser sobre o tema, a mensagem ou a decisão de algum opositor e não ao próprio opositor; nunca na pessoa física, por mais maligna que ela seja;

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11) Publicar de antemão os objetivos da manifestação: para eliminar ruídos e desinformação pela imprensa, os grupos devem alinhar as mensagens, mesmo que não tenham uniformização da linguagem, e publicá-las em todos canais possíveis, inclusive na grande mídia, para evitar falsas interpretações.

12) Coordenar com outros movimentos: um movimento é que legitima a ação do outro. Isso deve ser feito quase em uníssono, para que reverbere de baixo para cima, da população para o Congresso. Nesse sentido, toda ação é válida, mesmo que pequena;

13) Ações pequenas valem: vigílias, passeatas, protestos silenciosos ou com cartazes, mesmo com número reduzido valem a pena para demonstrar constância entre grandes mobilizações.

14) Transparência: sempre registrar e publicar vídeos e fotos de todo o conjunto, todas as ações dos grupos, quem e como ajudam para que ninguém venha a “expor” o grupo com uma denúncia “reveladora” mais tarde.

Nossa situação

Um seguidor me perguntou no Twitter o que Gene Sharp diria do Brasil na situação de hoje.  Eu respondi que Sharp diria para a sociedade civil brasileira se reorganizar pois a solução não viria dos sistemas do Estado. Outro seguidor concordou e acrescentou que precisamos fortalecer os “corpos intermediários” capazes de oferecer um “contrapoder” ao poder de Estado. Pois é, estávamos em curso para criar esse poder, mas depois de 2018, e a vitória do Jair Bolsonaro, os movimentos se desmobilizaram, sem saber que ainda seriam fundamentais. 

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Como já pontuei em diversos artigos, todo o Estado Social brasileiro foi institucionalizado para defender políticas e políticos corruptos e de esquerda.  Nesse contexto, Bolsonaro e os políticos de oposição são como um vírus no sistema e o sistema está fazendo de tudo para expurgá-los. Como vimos, Bolsonaro com um punhado de parlamentares não conseguiu mudar essa realidade institucional, mesmo gozando de ampla popularidade. É porque popularidade não é a mesma coisa que sociedade civil organizada. 

Aliás, são coisas distintas e muitas vezes não relacionadas: é possível fazer mudança política com sociedade civil organizada, mas sem popularidade dos agentes, como vimos na aceitação do teto de gastos e na reforma trabalhista no governo Temer; ao passo que sem sociedade civil organizada, mas com ampla popularidade, vimos a rejeição ou impedimento das leis anticorrupção, das privatizações, da política de armamento, da lei antiterrorismo e outras no governo Bolsonaro.  

O que estamos vendo hoje é um governo fraco, sem base política, repleto de quadros criminosos e impopular diante de uma vasta parcela da população, um governo que consegue avançar reduzindo a oposição a uma minoria, comprando o Centrão, que é a maioria, e desmobilizando a sociedade civil pelo medo.  

Próximo passo

Na euforia das eleições de 2018, e consequente desmobilização dos movimentos, lembrei de ter comentado algumas vezes em grupos um dos ensinamentos de Gene Sharp que dizia o seguinte: “a mudança de um regime (ou presidente) não traz a utopia. Ao contrário, ela abre o espaço para um longo processo de luta e de mudança política, econômica e social para a erradicação das formas anteriores de injustiças e opressão.”  

Pois bem, falhei em convencer alguns movimentos a se manterem em pé e atuantes.

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Recentemente o ex-presidente Jair Bolsonaro convocou os brasileiros para saírem as ruas dia 25 de fevereiro. Acredito que esse chamado seja uma nova oportunidade para os membros da sociedade civil se reorganizarem e quem sabe para algo mais permanente.

Gene Sharp estudou várias ditaduras, a maioria delas eram piores do que a nossa e a sociedade civil era mais fraca e limitada. Por isso, se a sociedade se organizar mais seriamente temos chances de promover grandes mudanças e grandes vitórias; quem segue essa coluna sabe que o objetivo é maior do que vencer eleições.