É possível mudar o sistema político por fora? Ou será que os sistemas políticos só mudam por conta própria quando entram em falência ou se deparam com algum impasse? Essas perguntas só fazem sentido quando o sentimento geral sobre as instituições públicas é de descrédito total. Some-se a isso a evidência de estarem sendo geridas por notórios agentes incompetentes e criminosos, e a revolta aumenta.
Então, temos uma situação revolucionária? Para uma parcela da população, sim. Já tratei desse tema aqui, em artigo anterior, mas precisamos entender se esse tipo de levante popular tem chances de mudar efetivamente o sistema ou se apenas mudam seus agentes.
A história nos mostra que para a substituição completa de um sistema de governo por outro, dentro de uma perspectiva revolucionária, é necessário que os quadros e as novas organizações já existam e operem entre si em paralelo ao sistema vigente, mesmo que sem poder nenhum. Mobilizar para demonstrar indignação contra o sistema é fácil, mas raramente tem a efetividade esperada sem organização. A história do século 19 é exemplo dessa constatação.
As revoluções contra os sistemas políticos no século 19 foram sangrentas, repletas de mártires, mas suas efetividades foram limitadas e só ocorreram no longo prazo
Se tivéssemos de reduzir a história política do século 19, poderíamos fazê-lo da seguinte maneira: foi um século de revoluções, seguido de contrarrevoluções, que geraram outras revoluções e que foram sufocadas por outras contrarrevoluções. Ao fim, percebemos que as revoluções contra os sistemas políticos foram sangrentas, repletas de mártires, mas suas efetividades foram limitadas e só ocorreram no longo prazo.
Há quatro momentos do século 19, duas revoluções e duas contrarrevoluções, que elucidam essa visão.
O primeiro se dá na França: de 1789 a 1815, a Revolução Francesa, seguida das Guerras Napoleônicas, que introduziram constituições em diversos reinos europeus, romperam com a hegemonia das famílias tradicionais da Europa. Veio, em seguida, a primeira contrarrevolução: no Congresso de Viena, os impérios contra-atacam. Em 1815, com a derrota de Napoleão, as maiores potências europeias convergiram no Congresso de Viena para restabelecer a antiga ordem das famílias tradicionais reinantes. Foram restauradas a monarquia e a dinastia dos Bourbon na França, e as respectivas casas reinantes nos diversos países que foram invadidos por Napoleão.
O segundo momento revolucionário levantou um questionamento: seria o despertar da Europa? Em 1848, a crise econômica e a insatisfação da classe burguesa geraram levantes populares e de estudantes na França, na Áustria e em principados na Alemanha e na Itália. Trabalhadores, burgueses, liberais, nacionalistas, socialistas e republicanos convergiram contra os sistemas de monarquias tradicionais, mais uma vez. Exigiram fim da censura, mais liberdades individuais, mais democracia parlamentar e mais inclusão. Mas, na segunda contrarrevolução, os impérios sobrevivem. Mais uma vez, a força dos monarcas demonstrou ser mais forte, sufocando os levantes populares. A diferença é que as mudanças que antes tinham o protagonismo da população passam a ser implementadas pelas elites reinantes, embora em compasso de conta-gotas. Alguns monarcas se anteciparam e incorporaram os anseios dos levantes em uma Constituição, ou redefiniram seus papéis para compartilhar mais poder com seus parlamentos – e foram populares, pois vários membros da classe média da época preferiam a ordem sob a monarquia tradicional que o caos sob a turba das multidões.
Apesar de os levantes revolucionários terem pautado mudanças políticas, na forma, durante o século 19 na Europa, elas foram efetuadas pelas mãos dos comandantes do sistema – no compasso e da forma que eles determinaram.
No século 20, a coisa mudou: Os levantes populares passaram a ter impacto profundo na mudança de regime e sistema político. Por quê? Porque eles deixaram de ser autênticos e passaram a ser armas políticas de forças maiores, por isso mais eficazes, pois contavam com financiamento, armamento, agenda política, método e apoio de governos e instituições que visavam desestabilizar inimigos ou controlar países.
Os levantes do século 21 se assemelham aos do século 19: são autênticos, mas ao mesmo tempo ineficazes para a derrubada do sistema e do regime
Em suma, os levantes, por mais representativos que fossem da vontade popular, acabavam servindo como fachada de interesses maiores. Começando com a Revolução Russa em 1917, que foi inicialmente financiada pelo Kaiser alemão, rival do imperador russo. Depois, ocorreu o fim da hegemonia dos monarcas e dos Impérios Centrais da Europa, em 1920, e a criação da Liga das Nações – ambos com forte influência externa dos Estados Unidos.
Na sequência, veio a Revolução Chinesa, financiada e apoiada pela União Soviética. O mesmo aconteceu na Coreia, em Cuba, no Vietnã, na Nicarágua e outros países. Criaram-se movimentos subversivos em todas as ex-colônias dos países europeus e em outras nações. Os levantes populares no Brasil do século 20 influenciaram a adoção de políticas públicas e ajustes nas diversas constituições que tivemos durante a república; e foram majoritariamente influenciados pela esquerda internacional, organizações, governos e partidos vinculados a ela, com raras exceções, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964.
E no século 21? Na época do impeachment de Dilma, entre 2014 e 2016, a primeira pergunta que a mídia fazia aos organizadores das manifestações contra a presidente “revolucionária” era quem estava por trás dos movimentos, financiando as manifestações. A resposta não agradou, pois foi uma iniciativa de cidadãos, membros da sociedade, sem vínculo político ou com interesses econômicos por trás daqueles movimentos. Uma verdade desconcertante para o governo de esquerda, pois significava que uma parcela expressiva da população estava descontente o bastante a ponto de se mobilizar espontaneamente. O governo, que antes se vangloriava de liderar historicamente as mobilizações populares, foi colocado no papel de fascista opressor, contra a população.
É nessa troca de polo que as sociedades de vários países se encontram. Se no século 19 a direita era a opressora, no comando da repressão do Estado, agora esse papel é da esquerda. Os levantes populares contra o sistema hoje não contam mais com financiamento de governos externos, de empresas de armamento, nem mesmo apoio de organizações mundiais, com agenda política e método coeso como da esquerda no século 20. Portanto, os levantes do século 21 se assemelham aos do século 19: são autênticos, mas ao mesmo tempo ineficazes para a derrubada do sistema e do regime.
No Brasil em 2024: A perseguição do STF contra diversos mobilizadores dos movimentos não difere das prisões e execuções arbitrárias que os regimes totalitários da Europa faziam no século 19. Os governantes do século 19, ao menos, eram francos quando efetuavam a repressão, pois visavam restabelecer sua autoridade pela força. Os atuais repressores são covardes, pois dependem de falsidades para justificar suas ações, colocando-se como “defensores da democracia”, quando na verdade estão sufocando a própria vontade popular. Qualquer que seja a forma, honesta ou desonesta, a história mostra que repressão só faz perder a legitimidade e insuflar cada vez mais a insatisfação.
Apesar de a esquerda ainda manter as mesmas narrativas de quando estava fora do poder, o polo se inverteu e todos sabem disso. A narrativa da esquerda libertadora não existe mais. A realidade opressora da prática da esquerda no poder se impõe. Mas agora a direita precisa olhar a história para pinçar aprendizados. Percebemos que, apesar de os levantes populares estarem em total desvantagem quanto à sua força, muitas mudanças aconteceram em função deles. Os impasses gerados pelas mobilizações do século 19 geraram resultados. E é com essa sabedoria que devemos pautar “o que” e o “como” fazer. Quem sabe em um próximo artigo…
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