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Eu sempre tive um sonho de escrever uma coluna comemorando esse feito. Depois de muito esforço de tanta gente, finalmente aprendemos a votar para construir um projeto de nação, uma identidade nacional que distribua abundância e justiça. É exatamente por isso que estou tão feliz no dia de hoje. Finalmente realizo este sonho.

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Fiz as contas aqui. É a décima quarta eleição que acompanho profissionalmente no Brasil. O bom desse tipo de trabalho é que os candidatos sempre são os mesmos, só mudam os arranjos que fazem entre si. As promessas também são as mesmas, as acusações idem e até as desculpas que eles nem dão porque não precisa, tem sempre alguém que corre para se desculpar por eles. Então só precisei decorar mesmo em 1996, dali em diante foi só repetindo e tirando da lista quem morreu.

Eu fiz as contas de quantas eleições seriam necessárias para curar o surto de amnésia, hipnose e catarse que se abate sobre as pessoas na hora de escolher um projeto de futuro. Pela evolução das últimas 14, outras 14 seriam pouco. Eu não vou esperar fazer 100 anos para escrever o que eu sempre sonhei, vou aproveitar o primeiro de abril mesmo: "finalmente o brasileiro aprendeu a votar". Pronto.

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O ruim de trabalhar cobrindo eleição é que eu não tenho a parte da amnésia por motivo de boletos. Sem ela, é impossível você se divertir. Na eleição, nossa diversão é igual torcer por time de futebol. Não faz sentido nenhum. Você escolhe um time e ele é o melhor, xinga todo mundo que torce para outro e ponto final.

No futebol isso dá certo por dois motivos. O primeiro é que os times não jogam fazendo alianças entre si, então você não vai ter de torcer para o time que você estava xingando semana passada e fazer cara de paisagem. O segundo é que, no caso de tudo dar errado e o Zagallo gritar "vocês vão ter que me engolir", é só no time, não mandando em todos os aspectos da sua vida cotidiana.

Avalie aquela perspicácia de gerenciamento de crise no final da Copa de 1998 para decidir sobre SUS, Petrobrás, concessões públicas, impostos, emendas parlamentares, precatórios, educação pública, enfim, pode completar a lista. Mas a verdade é que a gente nem pensa nisso quando escolhe um candidato porque isso não interessa ao eleitor brasileiro. Então as decisões podem ser tomadas da mesma forma que se decide mandar o Ronaldo cambalear em campo. Não importa.

No caso do político, o lance das alianças complica demais. Eu não posso esquecer por motivos de boleto, mas eu admiro demais a galera que simplesmente dá uma de louca. Tem duas alternativas. A primeira é free pass Zé de Abreu: simplesmente finge que não aconteceu nada e segue o jogo. A outra é o free pass Paulo Betti: dizer que, para fazer política, é preciso colocar a mão na m*rda. Ou seja, seu ídolo não se mistura com aquilo, ele é a mão, o coleguinha que é a m*rda.

Eu achava que o maior plot twist que eu veria na vida era o Lula apertando a mão do Maluf para viabilizar a candidatura do Haddad em São Paulo. Mas, depois de ontem, nem plot twist de filme vai me surpreender mais. O pessoal já perdeu completamente a noção porque paquita de político aceita tudo.

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O político brasileiro sabe que a gente não vota nele, a gente vota contra o adversário dele. Ele não vale pelas qualidades que tem nem pelo projeto de país, mas pelo risco que representa contra a campanha do candidato mais odiado pelo eleitor. Então ele não precisa ter nenhum projeto além de ocupar o espaço político feito gafanhoto. E o pessoal ainda vai aplaudir porque pelo menos tirou o gafanhoto do outro.

Alguns dizem que a coisa no Brasil começou a desandar quando a primeira caravela avistou Porto Seguro. Não discordo completamente. Mas vamos ao nosso microcosmo temporal. Para mim, a coisa desandou mesmo na candidatura de José Serra a prefeito de São Paulo. Antes, o que político falava não se escrevia. A partir dali, nem o que político escreve se escreve. Esculhambação total.

Foi candidato à prefeitura quando meio mundo sabia que sua real aspiração era o governo do Estado. Jurou de pés juntos a campanha toda que não tinha nenhuma intenção de largar a prefeitura. Obviamente ninguém acreditou. Alguém teve a brilhante ideia de fazer ele assinar um documento com firma reconhecida em cartório dizendo que não largaria o mandato antes do final. A eterna boa intenção adolescente do eleitor brasileiro.

Boa intenção basta para melhorar um país? Não. Estar do lado certo da história basta? Não. Ser um cidadão de bem basta? Não. Além disso, precisa de ciência e eficiência. Aplicar métodos que tenham base em evidências. Que penalidade o documento fez José Serra assumir caso saísse do governo? Nenhuma. Vejam que ideia maravilhosa apelar ao moralismo de quinta categoria na política. Por isso fazem todo dia.

Ontem nós chegamos a um ponto em que eu já achei que o Lula e o Bolsonaro iam anunciar uma chapa juntos e resolver a eleição ali mesmo. O Doria faz um artigo para a Folha anunciando a candidatura à presidência, daí desanuncia e à noite reanuncia e renuncia. O Moro, que jurou não desistir da candidatura à presidência, muda de partido e por enquanto desistiu. Eu achei que eles estavam antecipando o primeiro de abril mas, na política brasileira, primeiro de abril é todo dia.

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A principal questão é que nós não temos uma cultura democrática. Começar a trabalhar nela seria um legado importantíssimo para os nossos filhos e netos, uma esperança de transformar o Brasil no que ele tem potencial para ser. Somos hoje uma democracia eleitoral, que é um passo antes de uma democracia plena. A maneira de tomar decisões em democracias plenas melhora todos os índices de evolução humana, até expectativa de vida e mortalidade infantil.

Ainda estamos presos numa polarização infantilóide fundada na ideia de Estado-babá. É o grande pai da pátria que vai nos defender do monstro terrível, não somos adultos gerindo uma nação e construindo um futuro coletivo. Numa democracia pensamos diferente, mas os direitos e liberdades só avançam. A ideologia de quem está no poder não é a que pauta a vida do cidadão, são todos livres para viver como julgam melhor. A alternância de poder garante democracias saudáveis.

Para compreender esse sistema, precisamos entender que somos todos humanos. Erramos querendo acertar. Fazemos coisas erradas sabendo que estão erradas. Existe redenção e o mundo não é dividido entre o lado do bem e o lado do mal, como se fosse um filme de criança. Mas vemos a política assim. Formadores de opinião vêem a política assim. Isso nem é política, é seita, futebol, Big Brother.

Você pode apoiar um político e criticar algo que ele faz, continuar apoiando e elogiar o que faz de bom. Você pode ser adversário de um político e elogiar quando a pessoa acerta, mantendo sua situação de adversário político ideológico. Em determinada situação, diante de um objetivo específico, adversários podem ter opiniões convergentes e aliados podem ter opiniões divergentes. A vida adulta é assim, não é só a política.

Pense em quantas vezes as pessoas que são seus melhores amigos e aquelas que você mais ama fizeram algo de que você discorda. Ou as vezes em que alguém que é seu adversário profissional fez um acerto que você reconheceu. Quantas vezes na sua vida o apoio veio de onde você menos esperava e o apoio que você dava como certo te deixou na mão? Por que o processo político não teria a complexidade humana?

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Nossa política tem um recurso tão irritante quanto burro que é fingir que não fez nada de errado e apontar erro do adversário como justificativa. Os políticos fazem isso direto e é culpa nossa. Se a gente não aceitasse essa falta de vergonha na cara, eles não fariam. Mas eles sabem que a gente aceita porque o negócio não é o futuro dos nossos filhos e netos, é ganhar discussão do cunhado no whatsapp.

Mensalão, o país parado olhando o PT pela ética na política fazendo lambança. Qual a resposta? Ah, a herança maldita dos tucanos, me mostra um que não faz caixa 2. Bolsonaro deu a primeira pisada de bola, alguém falou um "a". Qual a resposta? Ah, mas e o PT? Moro questionado. Ah, mas então o Bolsonaro que presta ou é o Lula que você quer?

Qual o problema de reconhecer que algo foi errado e continuar apoiando? O eleitor brasileiro precisa sair das fraldas para o país sair da lama em que a gente roda em círculos. Ninguém é 100% bom nem acerta o tempo todo. Você pode condenar algo que um governo faz mas apoiar o governo do mesmo jeito. Como pode apoiar uma política mas ser contra aquele governo. A militância cega e burra nos asfixia porque cria um país que não sabe a diferença entre certo e errado.

Este primeiro de abril foi minha rendição porque finalmente achei um tipo de militante que jamais esperava. O defensor de Geddel Vieira Lima. De Geddel, o homem que tinha um apartamento lotado de dinheiro vivo. Geddel. Olha, com toda sinceridade, eu entendo defender Bolsonaro, Lula, ACM, Sarney, Enéas, tudo quanto é gente com carisma. É da alma humana. Mas Geddel? E eu nem ataquei, só fiz piada. Pelo que eu conheço, o Geddel e os irmãos ririam da piada.

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É certo ou errado ter um apartamento cheio de dinheiro vivo? É certo ou errado fazer aliança eleitoral com quem tem um apartamento cheio de dinheiro vivo? Ou você acha certo ou você acha errado, simples assim. Não para os adoradores do Nosso Salvador Desfascistador da Galáxia Lula:

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Nem sempre fazemos a coisa certa. E o importante não é estar sempre certo até porque é impossível, somos humanos e necessariamente imperfeitos. O essencial numa sociedade é que adultos saibam a diferença entre certo e errado, tenham clareza para se manifestar e consigam ensinar as futuras gerações. Enquanto nosso amor por salvadores da pátria e ideologias for maior que o amor pelos nossos princípios, sacrificamos o futuro.