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É impossível não nos relacionarmos com a China e seu mais de bilhão de habitantes, nosso principal parceiro comercial há 11 anos consecutivos. Gostemos ou não, o mundo é povoado de criaturas únicas, todas diferentes entre si, muitas conflitantes. Vivemos a cultura do cancelamento, uma era onde heróis de teclado são construídos quando atacam um inimigo por dia. Cria-se a impressão de que só há duas formas de relacionamento: guerra ou submissão total. No mundo adulto, funciona diferente.
A energia gasta na cruzada infantilóide para cancelar a China seria muito útil para construir um relacionamento que não seja de submissão. Cultivamos a cultura do capacho, em que grupos se organizam em torno da submissão a um líder, o que necessariamente depende de pisotear princípios. É necessário ter princípios para impor limites.
Temos confundido muito bravata, patriotada e gritaria com coragem. Trata-se exatamente do oposto, os sintomas mais evidentes de insegurança e fragilidade. Quem pode faz acontecer, espera colher os resultados para anunciar a vitória. Líderes não ficam gritando na internet ou espalhando boatos que coloquem medo nos cidadãos, assumem a responsabilidade e resolvem.
Um dos maiores estrategistas de guerra da humanidade, referência até hoje, é o chinês Sun Tzu, que viveu séculos antes de Cristo e ainda é lido no mundo todo. Ele tem vários ensinamentos, mas um muito importante é: "Os guerreiros vitoriosos primeiro vencem e depois vão para a guerra, enquanto os guerreiros derrotados primeiro vão para a guerra e depois procuram vencer". Puxar briga de rede social com o Partido Comunista Chinês não parece ser um jeito eficiente de equilibrar o relacionamento e fazer com que o Brasil seja respeitado.
Vencer primeiro e depois ir para a guerra significa realmente ter coragem, trabalhar duro. No caso específico, se não diversificarmos nossos parceiros comerciais, é inútil espernear contra a China. A moda política pode ser copiar todas as ações de Donald Trump, ocorre que nós não somos os Estados Unidos. Dizer que nós não precisamos da China lembra Fidel Castro e Hugo Chávez dizendo que não precisam dos Estados Unidos. São as duas maiores potências do mundo e, apesar dos embates porque têm culturas muito diferentes, ambas mantém relacionamento.
Um gatinho olha a briga de dois leões e resolve enfrentar uma das feras com sua arma mortal, que é miar muito alto até o leão ouvir. O leão ouve, dá um rugido. Mamãe gata diz que é muito feio o leão rugir e que vai defender seu gatinho nessa briga. É como eu explicaria a uma criança de 5 anos o imbroglio em que nos metemos por confundir gritaria com coragem ou capacidade de realizar.
A China não acredita em democracia, vive assim há milênios. O princípio básico dessa estrutura de poder é só reconhecer a dignidade humana de indivíduos que pertencem ao grupo. A lógica chinesa venceu quando um parlamentar eleito no Brasil se declara contra toda a China. Também vence a lógica chinesa quando grupos de brasileiros ficam espalhando correntes pela internet com medo de qualquer relacionamento com o país. Quem não pensa como nós ou quer nos dominar deixa de ter a dignidade reconhecida.
Já escrevi inúmeros artigos sobre intenções do Partido Comunista Chinês, que são públicas. Há um plano de assumir a liderança mundial até 2049, a intolerância religiosa é gravíssima e pilar do comunismo, os chineses são líderes mundiais na área de inteligência artificial e também têm muita prática em passar para a violência física conflitos originados nas redes sociais. Não vai ser com tuitadas bancando o valente que iremos criar uma relação em que os nossos princípios fiquem claros e sejam respeitados.
Todos têm o direito de expressar seus sentimentos sobre 5G, comércio exterior e comunismo. Mas líderes não têm o direito de empurrar medo goela abaixo da população quando são eles os responsáveis por resolver. Os tuítes do presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara xingando a China são uma tática com a profundidade intelectual do Dollynho. O Itamaraty, ao defender um absurdo desses, chega ao nível Dollynho cover. E a conta sobra para a gente.
Há quem acredite na gritaria dos que pregam resistência contra a China. Oremos para que, juntando todos, consigam montar um gaveteiro. Amamos direitos, odiamos deveres. Eduardo Bolsonaro tem todo o direito de postar o mix de teoria da conspiração com patriotada que postou. Somos um país livre, democrático e o Twitter é uma empresa privada que não segue leis brasileiras mas continua funcionando. Os apoiadores esquecem que o deputado tem DEVERES. O dever dele como Presidente da Comissão de Relações Exteriores é trabalhar para que saibamos colocar limites e manter nossos princípios na relação com nosso principal parceiro comercial.
A prioridade na política recente tem sido a bravata e a demonstração pública de valentia, coisas típicas de quem, na vida real, não lava uma cueca. Embora a direita diga que isso é coisa da esquerda e vice-versa, todos sabemos que é uma praga suprapartidária e atinge até mesmo alguns dos nossos parentes e amigos mais queridos. Há diferenças nos deveres e nas consequências das ações de uma autoridade e dos cidadãos que se unem em grupos virtuais para curtir juntos o medo da China e responder xingando ou criando ilusões de que é possível nos impor à força e cortar relações.
O cidadão comum faz tudo aquilo que a lei permite. O servidor público só faz aquilo que a lei manda. São princípios diferentes para a atuação de quem outorga poder e de quem o recebe dos compatriotas. Bravata não faz parte dos deveres e, no caso concreto, atrapalha o cumprimento dos deveres. Na nossa cultura capachista, apontar isso seria gerar uma guerra com o deputado. Então, trata-se uma autoridade importantíssima do país como criança cuja baby sitter é o Itamaraty.
A militância identitária foca suas lutas e paixões no universo simbólico e muitas vezes prejudica aqueles que diz defender. Fiz um longo raciocínio sobre este processo no meu artigo de ontem. Agora temos um caso concreto em que isso se repete na direita. Uma autoridade cujo dever é conseguir equilíbrio e crescimento nas relações exteriores brasileiras resolve prejudicar tudo isso para mitar nas redes. Fazem isso por quê? Porque podem, simples assim.
Enquanto as autoridades chinesas fazem uma firme defesa do próprio país e se colocam agora na posição de quem recebeu uma provocação, o que as nossas estão fazendo? Estão defendendo o povo, o país ou uma autoridade específica? O complexo de capacho faz com que as pessoas não se revoltem quando vêem o aparato do Estado defendendo poderosos em detrimento do povo, o que ocorre sistematicamente desde sempre. Agora acharam uma forma de fazer parte do povo aplaudir isso e não mais chamar autoridades à responsabilidade.
Patriota é quem cobra autoridades para que defendam a pátria, a nação, o povo, mesmo que as autoridades fiquem tristinhas ou xinguem muito nas redes sociais. Quem se coloca à disposição para exercer o poder tem de saber que haverá maior cobrança, muito mais responsabilidades e a absoluta necessidade de ter senso de dever. O cidadão comum que está hoje inquieto, com medo, sem saber o que pensar sobre a relação com a China já pagou bem caro a equipe que deveria entregar a solução.
O foco do Brasil não pode ser a China, tem de ser o Brasil. O que é melhor para o país? Tomar essas decisões exige princípios claros, coerência nas ações, força moral e credibilidade. Há inúmeros diplomatas brasileiros trabalhando quietos nos bastidores, às vezes tomando pedrada por causa das patriotadas dos políticos, mas colocando o senso de dever à frente da vaidade. As três grandes religiões monoteístas dizem que onde há vaidade não cabe Deus.
No Partido Comunista Chinês também não cabe Deus, que jamais será engolido por ele. Cabem os vaidosos, os imprudentes e os que primeiro declaram a guerra para depois ver o que fazem. Na apoteose da superficialidade, julga-se conhecer a pessoa ou o grupo pelo discurso. Lembremos o Carrefour com sua caríssima campanha pela diversidade, contra o racismo e a hashtag #TodesMerecemRespeito. Jesus costumava chamar quem discursa de uma forma e age de outra de "sepulcro caiado" ou "raça de víboras". Aprendamos a conhecer as árvores pelos frutos.