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A desembargadora que difamou Marielle e os anônimos superpoderosos
| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Difamar em público e pedir desculpas em particular costumava ser característica conhecida dos canalhas e dos chefes ineficientes. As pessoas dividem-se entre as que toleram e as que não toleram esse tipo de comportamento. Na era das redes sociais, deixa de ser uma questão de atitude ou caráter para se tornar algo a ser decidido na Justiça num primeiro momento e que faz pensar os governos em todo o mundo.

A decisão específica está para ser tomada em um dos casos mais rumorosos e mais tristes de difamação no Brasil recente, o ocorrido após o assassinato da jovem vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro. Qualquer que fosse a posição política, é uma tragédia humana a violência dessa morte, principalmente diante de uma moça que começava a vencer na vida, superou muitas dificuldades. O que levou tanta gente séria a substituir a tristeza pela vontade de difamar uma pessoa que acabava de ser assassinada? Ainda buscamos as respostas.

As palavras utilizadas para atacar ou difamar pessoas mudaram muito pouco ao longo do tempo. Aliás, se você analisar inscrições feitas por cidadãos comuns há 2 mil anos, no sítio arqueológico de Pompéia, parecem as redes sociais. Se o conteúdo é o mesmo, por que as pessoas parecem tão descontroladas após a popularização das redes sociais? A diferença está no contexto e em não precisar assumir consequências, principalmente quando se consegue o anonimato.

Temos um caso concreto diante da Justiça. Não envolve obviamente os milhares de cidadãos que, sabe-se lá por que, entraram nesse ciclo doentio de falar as piores barbaridades sobre uma moça que acabava de ser assassinada. Envolve quem tem poder, autoridade e, no dia a dia, decide disputas entre pessoas. Trata-se da desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Marília de Castro Neves Vieira, que comentou uma postagem de um colega.

Fosse qualquer um de nós, palpiteiros sem poder oficial, seria só uma barbaridade, difamação, que tem punição na lei. Mas aqui estamos um passo adiante, levando em conta a dinâmica das redes sociais, que acaba envolvendo também a imprensa. Como a postagem parte de uma desembargadora, presume-se que ela sabe do que fala, que tenha informações reais e seguras antes de julgar alguém publicamente dessa forma. E seria facílimo que obtivesse tais informações, afinal a vereadora também era uma autoridade pública na mesma cidade.

Há quem imagine ser possível que autoridades públicas façam manifestações pessoais em redes sociais. A teoria, na prática, não funciona. Se o autor da postagem entende assim, todos os demais relacionam sua fala à da instituição que representa, inclusive a imprensa. As acusações da desembargadora tiveram o efeito de um rastilho de pólvora. Outras autoridades que conheciam Marielle Franco manifestaram-se de maneira bastante diferente naquela noite.

O coronel Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado Maior da Polícia Militar do Rio de Janeiro, fez questão de falar do apoio da vereadora a viúvas de policiais e a policiais que eram feridos ou sofriam qualquer tipo de abuso. "Portanto, postagens maldosas como essas, que vêm circulando nas redes sociais, além de não retratarem a realidade, são de um imenso desrespeito não só à historia de Marielle, mas aos nossos policiais honestos e trabalhadores sofridos, sobretudo as policiais negras, que tanto necessitam ser acolhidos nas causas que ela magnificamente defendia", disse na carta aberta "Choro agora por uma amiga admirável".

Não demorou para que a desembargadora percebesse o tamanho da injustiça que havia cometido e começasse também a ser publicamente julgada por isso. Resolveu fazer o que muitos fazem após difamação ou intimidação bem pública, um "pedido de desculpas" com alcance bem menor e mais focado em se justificar do que em se desculpar. A ofensa foi feita numa página pública, o que se alega ser retratação, em página privada.

Nessa altura, você provavelmente está pensando que as nossas vidas podem, por um ou outro conflito, estar nas mãos de pessoas que decidem com toda essa ponderação. Mas os olhos da Justiça estão debruçados sobre outro problema: a reparação foi suficiente? Não pensem que o fato de ofender em público e se desculpar em privado é o que deu problema. A questão é ter pedido desculpas apenas à memória da vereadora e não à família, que também sofreu as consequências da difamação.

Como ela não havia pedido desculpas à família, o Ministério Público Federal pediu a condenação penal da desembargadora pelos crimes de calúnia, modalidade específica contra os mortos, com pena agravada como o previsto pelo artigo 141 do Código Penal:
Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido:
III - na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria.

Depois do pedido de condenação, a desembargadora escreveu uma carta para a família de Marielle Franco e, segundo noticia a GloboNews, isso teria mudado o posicionamento da PGR para pedido de absolvição. O caso é rumoroso e os debates tendem a ser quentes. Mas imagine que não fossem autoridades públicas cuja voz é ouvida e que têm como se defender, fossem pessoas comuns nas redes. A desculpa privada compensa a difamação pública?

No fundo, é diante dessa decisão que está a Justiça brasileira. A tragédia inesquecível do caso Escola Base mostra que nem a retratação bem pública e reiterada, via imprensa, é capaz de conter os estragos de uma injustiça. Naquela época, esse tipo de preocupação voltava-se aos meios de comunicação de massa mas, hoje em dia, cada cidadão tem o potencial de obter o mesmo alcance.

Por que conteúdo ofensivo é tão popular?

Conteúdo ofensivo sempre caiu no gosto popular, é característica do pior lado da alma humana sentir prazer com o sofrimento alheio. As plataformas de redes sociais têm um grande papel em estimular esse sentimento ao coletar dados de usuários e promover o que causa emoções estimulantes para cada um especificamente. Mas um estudo publicado nos jornais científicos Sage Journals por Alexander Brown, da Universidade de East Anglia, no Reino Unido, traz outros fatores à discussão.

Há 5 fatores que potencializam os efeitos dos chamados "discursos de ódio" no ambiente virtual em comparação com aqueles feitos offline: anonimato, invisibilidade, instantaneidade, senso de pertencer a um grupo e possibilidade de verificar o dano causado.

"O anonimato - mesmo o anonimato percebido - pode encorajar as pessoas a serem mais ultrajantes, desagradáveis ​​ou odiosas no que dizem do que seria o caso na vida real", diz o estudo. "Por exemplo, o anonimato percebido da Internet pode remover o medo de ser responsabilizado pelo ataque e também pode demonstrar uma sensação de que as regras normais de conduta não se aplicam; o sentimento associado de liberação pode levar as pessoas a ceder às suas piores tendências", argumenta o autor ao comparar a ação de anônimos com o de pessoas que fazem ataques na vida real cobrindo o rosto.

A invisibilidade é o distanciamento do outro ser humano envolvido, a falta de contato visual. Tirando da equação as videochamadas, tão em voga durante a pandemia, temos o cenário perfeito para minimizar responsabilidades e consequências. “Se alguém não consegue ver a mágoa emocional causada por um discurso de ódio online, é mais provável que subestime seu significado. 'É apenas uma fala inofensiva; as pessoas não deveriam levar isso tão a sério.' Não podem ver os rostos de outras pessoas que podem desaprovar o que estão dizendo. E, de acordo com Danielle Keats Citron, ' as pessoas são mais rápidas em recorrer a invectivas quando não há pistas sociais, como expressões faciais, para lembrá-las de manter seu comportamento sob controle'."

No ambiente virtual, a instantaneidade é responsável por maximizar a expressão pública de ideias que, em interações reais, talvez as pessoas não verbalizassem nem para os próprios amigos. "Em comparação aos modos offline de comunicação, a Internet incentiva formas de discurso de ódio que são espontâneas no sentido de serem respostas instantâneas, reações instintivas, julgamentos não considerados, comentários improvisados, comentários não filtrados e primeiras reflexões", diz Alexander Brown. Óbvio que isso também pode existir na vida real, mas não com o potencial de se espalhar e causar dano como ocorre na internet. Decisões apressadas não são as melhores conselheiras.

Na formação de comunidades no ambiente virtual, o ataque ou a criação de um inimigo são formas importantes para criar o vínculo, o senso de pertencimento a um grupo. Se o grupo não convive e não colabora na construção de um projeto coletivo, atacar um grupo ou até mesmo um indivíduo pode ser o ponto que une todos. "Membros novos ou potenciais desses grupos podem se envolver em discurso de ódio online, usando os sites criados por esses grupos, se se sentem isolados ou se desejam a aprovação de outras pessoas que são membros de grupos de ódio, como parte de um impulso humano mais geral para aceitação por outros", diz o estudo. E, nesse sentido, os ataques online têm uma utilidade prática diferente, já que a prática "se tornou o método de escolha entre os grupos de ódio para cimentar o status dentro do grupo e fermentando um senso de comunidade intragrupo".

É importante ter em conta que ataques direcionados partem da desumanização do alvo, de tratar a pessoa ou o grupo atacados como objetos, despidos de dignidade humana por não fazer parte do grupo. Os ataques virtuais não têm como alvos as vítimas, mas os membros do grupo. Servem para celebrar o senso de comunidade e o poder da comunidade, não para produzir efeitos na vida real. Quando esses efeitos são danosos, o grupo se encarrega de minimizar.

A possibilidade de verificar o dano causado e de minimizar esse dano porque a interação é virtual também se torna um grande impulsionador dos piores comportamentos online. O que é mais traumático, ser xingado pessoalmente ou ser difamado virtualmente? Talvez a experiência pessoal seja mais impactante psicologicamente, mas a virtual possibilita um número maior de ataques, mais prolongados, sem imposição de limites e com mais prejuízos objetivos na vida real, inclusive envolvendo família, amigos e profissão. Pior ainda, caso o alvo reconheça o golpe, acaba alimentando quem tem prazer com seu sofrimento.

Podemos conviver com os anônimos superpoderosos?

Há quem diga que são só doidos falando bobagem, discurso fácil na boca de quem não preza pela própria dignidade. Partindo do pressuposto que os incapazes de defender a própria dignidade mentem ao defender uma ideia, trata-se de palavras ao vento. A difamação é forma de ataque ancestral na humanidade e persiste ao longo dos séculos porque tem efeito.

Os democratas consideram que a dignidade é inerente à existência humana e inegociável. Mentes ditatoriais partem do pressuposto de que a dignidade de um ser humano é condicionada à aderência a um grupo, seja político, econômico, social, racial ou casta. Usar ataques como amálgama da formação de um grupo não tem justificativa ideológica na democracia, trata-se de imposição ou chantagem.

Por meio das redes sociais, temos hoje uma série de recursos para que aviltar a dignidade e a autonomia de pessoas e organizações sejam o alimento da formação de um grupo virtual. Toda a legislação destinada à proteção da honra de indivíduos e da reputação de organizações tem duas lógicas, a da soberania nacional e a da responsabilização. Agora, essas leis são postas à prova numa realidade de plataformas de redes sociais transnacionais que permitem anonimato mesmo quando vedado pelos países, como é o caso do Brasil.

Imagem e confiança parecem conceitos abstratos mas são muito tangíveis na rotina de cada um de nós e na forma como funcionam as engrenagens da sociedade. O Judiciário brasileiro está diante de um dilema: vai se apegar a tecnicalidades ou vai mergulhar na realidade e decidir se desculpas em privado reparam o enxovalhamento público? Para além disso, vai decidir se seus próprios membros estão ou não liberados para cair na tentação de liberar publicamente seu pior lado a bordo de uma toga. Queiram ou não, nas redes sociais, os membros a vestem 24 horas por dia.

Se a questão já é complexa quando podemos identificar e chamar à responsabilidade quem causa danos, como vamos lidar com o anonimato? A legislação já estabeleceu que é proibido, mas as redes sociais dão permissão para que ele seja livremente exercido, sem se importar em evitar as consequências para pessoas reais. Anônimos superpoderosos têm sido citados até mesmo em acusações rumorosas do Ministério Público. Empresas construídas por pessoas reais e que trabalham na vida real têm se rendido à chantagem dos falsos consensos propostos por anônimos.

Chega a hora de um chamado à realidade. Se o assassinato de reputações recebeu tratamento legal quando era mais difícil de engendrar, mais lento e de menor alcance, é chegada a hora de rever regras diante da realidade. Quis custodiet ipsos custodes? Quem vigia os vigilantes? Quando sabemos quem eles são, temos resposta mas regras muito defasadas de responsabilização. Resta saber como lidar com os inúmeros casos em que esses vigilantes ou paladinos da moralidade conseguem maximizar seu poder destrutivo sem assumir responsabilidades.

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