Alguns debates são a curva de rio da internet, atraem tudo quanto é lixo emocional das pessoas e não vão a lugar algum. O debate sobre a privatização dos Correios está no nível de briga de fandom da Juliette com o fandom do Gil do Vigor. A diferença é que bate-boca em torno de Big Brother não mexe na nossa vida prática.
Confesso que estou realmente assustada com o grau de descolamento da realidade das pessoas bem informadas e interessadas por política. Não se está debatendo a privatização dos Correios, mas as fantasias de cada um em torno do tema. Há uma enxurrada de opiniões fortes sobre algo que ninguém sabe: qual o modelo proposto. Como sempre, o Brasil só sabe o que não quer.
Sucesso nas redes sociais, a autoajuda disfarçada de militância entrou também no debate sobre a privatização dos Correios. As pessoas falam apaixonadamente sobre o modelo de Estado que defendem, a depender da ideologia em que acreditam. A partir daí, saem com opiniões prontas e acabadas sobre um projeto real de privatização dos Correios que desconhecem.
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Estou velha. Sou do tempo em que o debate sobre sonhos, imaginação e ideologia era coisa de adolescente. Quem paga boletos debatia em primeiro lugar a realidade. Vejo nas redes sociais mães e pais de família falando como se tivessem 16 anos de idade e aquela certeza absoluta de saber mais sobre tudo do que todas as outras pessoas.
Os números são escolhidos a granel para dar a impressão de que a pessoa está debatendo algo sério mesmo sem falar lé com cré. Há um debate acalorado em que grupos defendem apaixonadamente que os Correios dão lucro enquanto outros mostram subsídios e prejuízos. Daí vem alguém falar sobre o fundo de previdência, a ineficiência, a necessidade do choque de gestão.
A coisa descamba mesmo quando alguém bota na mesa o coringa da corrupção. Privatizar é a única saída para a moralização e estão aí as empreiteiras brasileiras que não nos deixam mentir. Nesse ponto, a discussão sobre privatização dos Correios vira uma briga de bar de Sessão da Tarde. Cinco minutos depois do primeiro tapa, todo mundo está quebrando tudo e ninguém sabe por que nem como parar.
O debate é feito sobre a ideia de privatizar ou não o serviço de Correios sem que se leve em conta uma única gota de realidade. Há uma proposta concreta na Câmara dos Deputados, o que está escrito ali? Outros países também têm serviços de Correios, trata-se de um direito do cidadão. A nossa proposta é parecida com alguma outra? Como funciona nos países em que se implementou o sistema que é proposto agora?
Sou corajosa. Resolvi fazer essa pergunta justo na rede mais tóxica, o Twitter. Primeiro recebi uma enxurrada de gente falando que nos EUA não tem correio estatal e funciona. Só que tem, o US Mail. Daí dizem que ele não tem monopólio de envio de documentos, é diferente. Eu mando documentos pela Jadlog aqui em Cotia, interior de São Paulo, que não fica nos Estados Unidos. Resolvi trocar a pergunta.
Descobri que a maioria das brigas em torno da privatização dos Correios é sobre coisas que não existem. Primeiro porque a proposta do governo brasileiro não é passar para a iniciativa privada, é empresa de economia mista com possibilidade de concessão. Depois porque a defesa apaixonada do livre mercado de entrega de correspondência existe só na cabeça do internauta brasileiro, não tem no mundo nada assim. Nenhum lugar do mundo tem serviço 100% privado de Correios.
A entrega de encomendas e correspondências é algo que tem interferência direta no cotidiano de cada um de nós, nas nossas vidas profissionais e pessoais, sobretudo com as restrições da pandemia. Toda a economia é afetada por mudanças nos Correios, para o bem ou para o mal. O que interessa ao cidadão é saber de forma objetiva como ficará este serviço com a proposta do governo. Enquanto isso, formadores de opinião ignoram a realidade e debatem o sexo dos anjos, abduzidos pelos algoritmos das redes sociais.
Quando falamos em países que têm Correios "privatizados", na realidade não se fala em empresas particulares que fazem o serviço, mas sempre em algum tipo de controle do Estado sobre a atividade. O modelo mais liberal é o da DHL alemã, que era originalmente uma empresa estatal e acaba de completar sua transição para a iniciativa privada.
Trata-se de um processo planejado e controlado que durou mais de 20 anos para que não houvesse queda no serviço nem lugares desassistidos. Ainda assim, o KfW Bankengruppe (uma espécie de BNDES da Alemanha, banco público de fomento), detém 20,5% das ações. É o sistema que chama-se no mercado de "golden shares", quando o Estado fica com uma porção especial das ações que dão um controle maior, como direito de veto, por exemplo.
Também me disseram que o Japão tem correios privatizados. Fui atrás da história. Trata-se novamente de um processo longo e estruturado, iniciado em 2003, interrompido em 2007 em virtude de um escândalo de corrupção e retomado novamente depois. A data prevista para finalização é 2028. O governo japonês detém 50,7% de participação nos correios.
Mas é um tipo de empresa muito diferente do que temos aqui no Brasil, não tenho certeza de que é possível comparar. O Japan Post, na época do início do processo de privatização, era também uma potência do mercado financeiro, com aplicações, seguros e fundos de pensão. A empresa fazia as duas coisas, a parte financeira e a entrega de encomendas e correspondências. No Brasil, até temos alguns pagamentos nos Correios, mas ele não é um banco que fatura com isso.
Fala-se muito em privatização como remédio contra a corrupção, já que inúmeros escândalos envolveram os Correios. Não creio que o menor índice de corrupção no Japão e na Alemanha se deva à privatização, cultura tem um peso enorme. Mas aqui na Argentina já se fez concessão pública dos correios para moralizar e melhorar o serviço. A empresa privada que assumiu quebrou e deu um prejuízo maior do que a estatal capenga dava antes. Há jeitos e jeitos de privatizar.
O caso Argentino ainda tem uma pitada de latinidade novelesca. A empresa que assumiu os Correios era de Franco Macri, pai de Maurício Macri, que viria anos depois a ser presidente do país. A briga judicial entre a empresa e o governo argentino não terminou até hoje e talvez não exista mais uma forma de colocar um ponto final. Quem reestatizou a empresa foi Néstor Kirschner e a questão tornou-se uma peleja política entre as duas famílias, que continuam brigando pelo poder.
A privatização brasileira seria à argentina ou à alemã? Claro que, de tanto frequentar rede social, já dá aquela vontade de soltar uma platitude falando de comportamento, latinidade, corrupção e falta de planejamento. Só que eu gosto demais da minha vida enviando e recebendo encomendas, então fui ler o projeto de lei. A conclusão é que não tem como saber. O projeto abre a possibilidade de algo que não especifica.
Segundo o projeto 591/2021, que é a proposta concreta do que muitos estão chamando de "privatização" dos Correios, haveria uma mudança na natureza jurídica da Empresa de Correios e Telégrafos, ECT. Ela passaria de estatal a empresa de capital misto com o nome Correios do Brasil S/A. Também poderia fazer concessão pública, do serviço todo ou em partes. Não há mais detalhes. Quem vai decidir tudo posteriormente é a Anatel, que cuidará dos Correios tão bem quanto já cuida da nossa telefonia e da internet.
A Anatel ganharia mais essa atribuição e também mudaria de nome, seria a Agência Nacional de Telecomunicações e Serviços Postais. O monopólio da modalidade carta ou correspondência só seria quebrado após 5 anos do início da privatização e se a Anatel assim decidir. Não há um desenho pronto de como ficaria o serviço nem a nova empresa de capital misto.
Como a ideia é de uma S/A, ela poderia ter capital aberto, mas o texto não diz se vai ser assim ou o capital será fechado. Também não diz o percentual que será vendido à iniciativa privada nem o percentual que ficaria com o Estado, não fixa um percentual mínimo do Estado nem preferência de ações, posições no Conselho, controle, nada disso. Tudo isso seria decidido depois, pela Anatel.
E quem prestaria o serviço efetivamente, continuaria sendo feito pelos Correios ou seriam empresas privadas? Segundo o projeto, a Anatel vai definir os detalhes, seguindo a política postal brasileira, que ainda terá de ser elaborada pelo Ministério das Comunicações. Pode continuar sendo serviço estatal ou pode ser concessão, comum ou patrocinada, de todo o serviço ou de regiões. A Anatel é quem vai definir depois. É sobre isso que se debate com tanta certeza nas redes.
O projeto estipula que a Correios do Brasil S/A deixaria de ter todo e qualquer incentivo fiscal que não esteja disponível para as demais empresas do setor. Hoje, os Correios não pagam impostos. Essa diferença seria um desafio para o projeto de privatização, que precisaria contar com o impacto da carga tributária sobre as operações. Mas não tem nada disso no projeto, quem vai decidir depois é a Anatel.
São duas situações diferentes de possibilidade de relação com a iniciativa privada. A primeira é deter parte da empresa Correios do Brasil S/A, que sempre terá participação do Estado. A outra é ser concessionária do serviço de entregas de encomendas e correspondências. As concessões podem ser essas tradicionais que a gente conhece, em que a empresa explora o serviço e é remunerada pela tarifa. Mas também pode ser a patrocinada, em que o Estado dá retorno em dinheiro ao concessionário.
O texto deixa aberta à decisão da Anatel se o serviço de entregas e atendimento na agência será feito pela equipe da estatal ou empresa privada de forma completa ou fracionada. A Anatel pode decidir que haverá uma concessão só para todo o Brasil, com agências e entregas. Também pode decidir que não vai haver concessão nenhuma. Ou pode decidir fracionar da maneira que quiser e conceder partes, na medida em que decidir depois.
Entre os argumentos mais apaixonados sobre a privatização dos correios estão os empregos e o atendimento aos rincões. Nada do debate faz parte da realidade. O projeto não define o que fazer com os funcionários, a Anatel pode manter todos, por exemplo, não conceder nada. O atendimento a áreas isoladas é obrigação constitucional do Estado brasileiro. Se nenhuma empresa fizer, o governo tem de fazer.
Vi nos últimos dias adultos metidos em brigas homéricas que diziam ser sobre a "privatização dos Correios". Nunca foi sobre isso, foi sempre sobre a imagem que querem projetar para o grupo social do qual fazem parte nas redes. Nenhum dos argumentos usados tem relação com a realidade. O projeto atual não é privatizar, é dar ao Ministro das Comunicações e à Anatel o poder de decidir sobre tornar o capital dos Correios misto e conceder serviços à iniciativa privada.
Na Alemanha, houve um projeto estruturado de 20 anos para a substituição dos serviços, com vários ajustes no meio do caminho. O foco inicial foi a realidade, como vamos fazer isso. Também não estou querendo que a gente vire alemão e comece a valorizar quem trabalha em vez de bater palma para intelectual de botequim. Seria uma afronta à nossa noção de elite.
Do jeito que está, o projeto deixa abertas possibilidades absolutamente diferentes na prática. Vamos a alguns exemplos. É possível que toda a prestação de serviços seja concedida à iniciativa privada e 99% da Correios do Brasil S/A seja passada à iniciativa privada? É. É possível que somente 1% da Correios do Brasil S/A sejam vendidos e se conceda apenas o serviço da agência dos Correios de Cotia porque eu reclamei da demora? Também é.
Quem tomará todas as decisões sobre o quanto o Estado continuará ou não participando da gestão e operação dos Correios é a Anatel, seguindo uma política que ainda nem foi elaborada pelo Ministro das Comunicações. Essa é a proposta em cima da qual muitos políticos estão faturando no marketing. O mandato do atual presidente da Anatel termina dia 4 de novembro.
Ah, mas você é a favor ou contra a privatização dos Correios? Você acha bom do jeito que está? São as perguntas que sempre me fazem. Não fujo. O jeito como está não é bom. Mas, ao contrário do que prometeu ao Brasil o deputado Tiririca, sempre conseguimos piorar as coisas. Eu sou a favor de que se debata uma proposta real e concreta feito adultos. É algo muito importante para a população.
Políticos, comunicadores e formadores de opinião parecem abduzidos por um debate sobre coisas que nem existem. É muito grave este nível de alienação via redes sociais quando estamos diante de decisões que mexem com a vida de todos os brasileiros. Infelizmente, debater teorias antiquadas sobre privatização dá mais likes e engajamento do que trabalhar. Enquanto o cidadão comum não abrir os olhos e continuar embarcando na onda dos mistificadores, seremos reféns das consequências.
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