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Há alguns anos fiquei chocada com um movimento de estudantes que ocupou prédios de universidades públicas em todo o Brasil. Soube que eles estavam levando roupa para lavar na casa dos pais e afixavam na porta dos acampamentos de protesto listas com produtos de que precisavam. Meu coração parou ao ver a foto da lista que pedia leite condensado e toddynho para os nossos revolucionários tupiniquins do século XXI. Se a gente realmente fosse precisar deles para fazer uma revolução, não poderia esperar que saísse nem um ovo cozido.
Num mundo polarizado, muita gente acreditou que os revolucionários movidos a toddynho fossem exclusividade da esquerda progressista. Puro engano. Não há nada mais democrático do que a moda de levar a sério birra de adolescente de 40 anos. Às vezes tenho vontade de juntar todo esse pessoal que passa o dia gritando certezas e apontando o dedo para os outros nas redes sociais. Tenho certeza de que, todos juntos, não montam um gaveteiro.
Reparo muito na recente valorização da birra do adolescente de 40 anos por puro recalque. Criança abandonada pela mãe não tem direito de fazer birra, amigos, simples assim. Não morre disso mas fica morrendo de inveja dos coleguinhas mais sortudos, principalmente os que conseguem viver de fazer birra até a idade adulta. É um trauma que me causa muitos problemas, inclusive familiares. "Minha mãe não se comove" é uma frase que meu filho passou a dizer com frequência a partir dos 3 anos de idade diante de birras ou chantagens emocionais de terceiros. Por que criança tem a língua tão solta? Voltemos ao artigo.
Continuando em língua solta, se alguém sofre com isso no Brasil, essa pessoa é Luana Piovani. E ela parece não estar rigorosamente nem aí. Aliás, quem nasce com a cara e o corpo de Luana Piovani tem um artigo especial na Constituição garantindo o direito de não estar nem aí. Ela deixou o Brasil confessando que não aguentava mais ter que fingir que militava por todas as causas progressistas para ficar bem com o pessoal do meio artístico. Queria postar só fotos de biquini nas redes sociais. Na minha humilde opinião, seria um serviço muito mais útil ao Brasil.
Confesso que não comentei nada sobre o imbroglio em que Luana Piovani se meteu na pandemia porque sou da geração que foi fã da Angel, a top model que ela representou em Sex Appeal, minissérie de 1993. Em setembro, a atriz ficou chocada quando chegou em Paris e descobriu que precisaria usar máscara em todos os lugares públicos. Postou um vídeo com um truque para não precisar colocar a máscara, que eu resolvi batizar de "Revolução do Sorvete".
Lógico que as recalcadas foram criticar esse ato revolucionário da minha heroína Luana Piovani pelas ruas de Paris. E ouviram o que mereciam, ela xingou as seguidoras descontentes de "bruacas", bem no estilo sóbrio que a caracteriza. Foi notícia em todas as revistas de fofoca do Brasil e rendeu bastante porque deu para fazer duas matérias, a do vídeo e do bate-boca virtual. Só que depois teve a parte três. Como não tomou os cuidados na viagem a Paris, Luana Piovani pegou COVID. "Testei, sim. Estou covidiana. Por isso estou trancada no quarto. As crianças não podem passar da porta para cá. Estou me alimentando igual um cachorrinho, na jaulinha, a Maiara coloca a comida aqui na porta", anunciou a atriz pelas redes sociais.
O que diz a Constituição Federal? Se você for Luana Piovani, você tem o direito de não estar nem aí. Mas precisa ter nascido Luana Piovani. Caso contrário, o videozinho sexy da "Revolta do Sorvete", além de ser um mico pode ter a mesma consequência, pegar COVID. Quem vai ensinar ao parque de areia antialérgica da sociedade brasileira que eles não são celebridades? Deveria ser a gente, mas temos preguiça e virou moda o vídeo da Revolta do Sorvete. Em versões B, claro.
A fina flor da alta sociedade paulistana obviamente ficou morrendo de vontade de circular pelos Jardins de Luxemburgo ostentando seu sorvete revolucionário. Infelizmente, as fronteiras estavam fechadas para nós, que vivemos no Brasil. O filho de dois amigos queridos, os médicos Lygia e Waldemar Kogos, foi muito rápido em adaptar a "Revolução do Sorvete" ao mundo de Caras brasileiro. Não tem Paris? Não tem Miami? Não tem praia? Paulista tem shopping.
Graças ao estrondoso sucesso da mãe e do networking fantástico do casal Kogos entre famosos e poderosos, Paulo Kogos conhece profundamente o funcionamento da nossa elite. Ultimamente tem se envolvido em protestos políticos com discursos muito inflamados. Não podemos negar que a gritaria, excesso de certezas e roupas que ninguém entende viraram moda entre os jovens da elite brasileira, para desespero absoluto dos pais. Pode ser que passe. Ele foi rapidíssimo ao postar, em setembro, a Revolução do Sorvete adaptada ao shopping.
Tenho a sensação que, desde setembro, o departamento artístico da Justiça brasileira estava louco de vontade de pegar uma carona na "Revolução do Sorvete". De um lado, quem vive de garantir a obediência civil praticando a desobediência. De outro, os justiceiros sociais fiscalizando madames e cavalheiros que desafiam a ordem tomando sorvete em shopping. Parece surreal até para a nossa esculhambação, mas aconteceu.
Por ser jovem há muito tempo, tive o privilégio de conhecer o Poder Judiciário e o Ministério Público antes das redes sociais. Aliás, fui parte da equipe que implementou as primeiras redes sociais de uma Suprema Corte no mundo, as do nosso STF. Ali, comecei também a fazer palestras pelo Conselho Nacional de Justiça instruindo juízes sobre o que eram as redes sociais, como funcionavam, quem tinha acesso e possíveis consequências. Era inevitável que desse o revertério que deu.
Dar, para sempre, um salário nababesco e poder total sobre a vida dos outros a um jovem inexperiente nunca foi um bom negócio. Imagine se esse jovem tiver como arrumar torcida e acreditar que realmente está fazendo uma revolução. No Poder Judiciário, os mais velhos chamam de "juizite" a certeza que só a inexperiência e a inconsequência nos dão. Hoje isso tem platéia. Ocorre que os salários nababescos são pagos para trabalhar, não para ficar se mostrando. Diversos países têm regras claríssimas para uso de redes sociais por funcionários públicos. Mas o Brasil não precisa de regras porque a gente tem bom senso, né? Então não fizemos.
Vasculhe a internet que você vai achar todo tipo de micagem e declaração disparatada das nossas autoridades da geração floco de neve. Eu, particularmente, tenho a sensação de que é uma minoria que envergonha a maioria. Quem trabalha com processos e decide a vida dos outros geralmente não é dado a se empavonar por aí. Imagine alguém que, dia a dia no trabalho, acompanhou o sofrimento real de famílias durante a pandemia. Pense na experiência da pessoa que estava ali tendo de decidir despejo, bloqueio bancário de desempregado, mandar tomar carro, achar hospital, problema com atestado de óbito, guarda de filho, violência doméstica. A maioria sabe o privilégio que tem, agradece todos os dias e tenta ajudar os outros, creio eu.
Mas há uma minoria que, mesmo testemunhando tudo isso, resolveu esfregar seu salário nababesco eterno na cara da sociedade brasileira. E toma post de festinha e brinde na cara do desempregado, da mãe que perdeu filho, do policial com COVID, do comerciante prestes a falir. É uma capacidade de julgamento de impressionar qualquer um. Houve vários, uma ficou famosa e está incendiando as redes.
A juíza que postou uma hashtag Aglomera Brasil já é uma celebridade digital, parte do grupo de Olavo de Carvalho. É da área penal e faz trabalhos conjuntos com o psiquiatra que atendeu Sara Winter e garante ser descendente de um Papa. Mas o que a internet não perdoou foi a hashtag, que rendeu representação ao Conselho Nacional de Justiça e agora um coro de colegas meus, jornalistas, pedindo a cabeça da juíza. Imediatamente formou-se o outro time da jihad, o que saiu defendendo a juíza nas redes. Diante do furdunço, o que ela fez? Um vídeo da "Revolução do Sorvete":
O Brasil conseguiu produzir um vídeo em que uma juíza, por livre e espontânea vontade, ensina desobediência civil. Nem na época mais revolucionária da minha adolescência eu sonhei tão alto. Além de ganhar um salário nababesco e eterno para garantir a obediência enquanto ensina na internet a desobedecer, o tema é impagável. Problematizamos o sorvete no shopping. Não tem rojão no STF capaz de desmoralizar mais o Judiciário que esse novo ícone da superficialidade. Deixo claro que meu vídeo preferido da "Revolução do Sorvete" continua sendo o da Luana Piovani. Ela é muito melhor em superficialidade que toda essa turma junta.
E que o recado sirva também para a turma da superficialidade do bem, esses bravos guerreiros de teclado que lutam pela exoneração da juíza digital influencer. Não adianta queimar o sofá quando você pega a mulher com o amante no sofá. Precisamos decidir se os concursos realmente selecionam quem tem capacidade de julgamento, se o salário inicial deve ser esse mesmo e que funções públicas podem ser acumuladas com a de digital influencer. Definir uma pessoa por um tuíte é tentador, mas também superficial.
Desde 2008 eu tenho a mesma opinião, que é polêmica e tem diversos oponentes. Para falar a verdade, já ouvi de diversos Coronéis da Polícia Militar e até de Generais do Exército que é linha dura demais. Para mim, o único jeito de evitar a esculhambação é proibir brasileiro com cargo público concursado de ter rede social aberta, poderia até ter, mas fechada e para questões familiares, culturais e hobbies. "Ah, mas eles não têm direito a liberdade de expressão?", questionam muitos. Autoridade tem de abrir mão de algo. Quem preza muito liberdade de expressão que vire artista, jornalista ou político.
Todos os trabalhadores abrem mão de parte da sua liberdade de expressão nas redes em nome do seu trabalho. Um comerciante não sai por aí dizendo tudo o que pensa porque a clientela vê. Você provavelmente não diz ao seu chefe nem sobre ele tudo o que queria. Nem eu, que sou jornalista, saio por aí dizendo todos os absurdos que passam pela minha cabeça diariamente. E por que fazemos isso? Porque temos o bônus mas arcamos com o ônus. Esses funcionários públicos não têm nenhum ônus, mas ele existe e sobra para nós, o esfacelamento das instituições.
Até as pessoas mais rígidas acham a minha solução rígida demais, eu entendo. Mas alguma solução precisa haver. A mistura entre atividades de Estado, atividade política e blogueiragem não está sendo benéfica para nós. Há dois valores em jogo. O primeiro é a integridade das instituições que definem os destinos de todos os cidadãos. O outro é a liberdade individual de pessoas que têm estabilidade eterna e salários nababescos para fazer parte dessas instituições. O que vale mais?
O que os novatos mais aprendem no Judiciário é que "juiz é independente". Realmente é, ninguém é chefe de juiz para garantir que a Justiça seja feita. Mais um suco de Brasil, falamos muito dos direitos e pouco dos deveres. Hoje a cidadania também é exercida no mundo digital e nós não dizemos a essas autoridades o que se espera delas nessa esfera. Insisto há anos que não é óbvio, ultrapassa o bom senso e é necessário sim ter regras claras. O país, até agora, optou por não ter. Tem gente no Judiciário entendendo que era para imitar a Luana Piovani.