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Não foi devido aos evangélicos que surgiu a ideia de tratar de abuso do poder religioso, uma figura jurídica que não existe, na Justiça Eleitoral. A história começa em 2012 quando o Ministério Público Eleitoral denunciou um cacique de Manuel Ribas, no Paraná, usando essa expressão para enquadrá-lo em uma figura jurídica já existente, a de abuso de poder político. Equiparar a autoridade religiosa à política, que efetivamente exerce poder em nome do Estado, significa dizer que os indivíduos que a seguem não têm liberdade de escolha ou capacidade de raciocínio.

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O caso concreto é que o cacique ameaçou banir da aldeia quem não votasse no candidato dele, expulsou professores que não se filiaram ao partido dele e proibiu outros candidatos de entrar na aldeia para fazer campanha. Era a segunda vez que o cacique repetia o comportamento. Ao tentar utilizar a tese de dominação pela religião para comparar o poder do cacique ao poder político, o Ministério Público gerou mais um julgamento com pedido de vista. Na época, o ministro Luiz Fux chegou a lembrar que o TSE poderia condenar o cacique por captação ilícita de votos, o que estava comprovado e não gerava nenhuma polêmica. Ocorre que os procuradores não acusaram o cacique disso.

O abuso de poder que é punido pela legislação precisa aniquilar a possibilidade de liberdade de escolha, como é no caso do abuso de poder econômico e político. Para que assim fosse com o poder religioso, teríamos de presumir que toda pessoa que segue uma religião se torna um fantoche do líder religioso. É uma visão preconceituosa de mundo partilhada por muitos.

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A discussão voltou depois, quando o pastor Valdemiro Santiago fez um evento na Igreja Mundial do Poder de Deus pedindo votos para seus dois candidatos em 2014. Era em grande estilo, na véspera das eleições, com direito a ônibus adesivado, vídeo de recomendação e distribuição de panfletos para a dupla deputado federal Franklin e deputado estadual missionário Márcio Santiago. Os dois foram eleitos e cassados pelo TSE por abuso de poder econômico. Nesse julgamento, a questão do abuso do poder religioso voltou à discussão, mas o TSE foi enfático: não existe.

O mesmo Valdemiro Santiago já tinha conseguido tumultuar as eleições anteriores em outro Estado, Rondônia, quando fez uma espécie de showmício gospel pedindo votos pela reeleição do então governador Ivo Cassol, seu vice e mais alguns parlamentares da chapa. Ele já estava pendurado desde 2006, num entra-e-sai do governo, devido a denúncias de compra de votos. No culto, Valdemiro Santiago disse que todos esses políticos eram "obra de Deus". Na época, a Procuradoria Regional Eleitoral alegou que “Baseada no argumento da fé religiosa, da crença das pessoas, abusou-se do poder de autoridade religiosa e da própria liberdade religiosa, garantida constitucionalmente, em prol de candidatos."

No julgamento de Cassol, o TSE já decidiu e afirmou textualmente que: "Nem a Constituição da República nem a legislação eleitoral contemplam expressamente a figura do abuso do poder religioso". O tribunal não legisla, julga. O lugar da discussão sobre a possibilidade ou não de criar a figura do abuso do poder religioso é o Congresso Nacional, não o TSE.

Agora, no julgamento de uma pastora da Assembleia de Deus eleita em Goiás, o ministro Edson Fachin volta mais uma vez a falar da figura do abuso do poder religioso, dizendo que precisa ser discutida. O fato é que o aumento da representatividade de evangélicos na política incomoda e essa população é tratada pela mídia e pela nossa elite econômica e intelectual como um bloco monolítico de incapazes.

Neste mesmo julgamento, o ministro Alexandre de Moraes questionou por que, seguindo essa tese da figura de autoridade, não se fala de abuso de poder sindical, empresarial e corporativo. Sindicatos, empresas e corporações unem-se às igrejas no grupo daqueles que não podem contribuir financeiramente para campanhas eleitorais. Por isso, quando utilizam sua estrutura para pedir votos, é abuso do poder econômico. O líder do sindicato exerce sobre os filiados maior ou menor poder que um pastor?

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"Não se pode transformar religiões em movimentos absolutamente neutros sem participação política e sem legítimos interesses políticos na defesa de seus interesses assim como os demais grupos que atuam nas eleições", disse o ministro Alexandre de Moraes. Será que os fiéis votam em quem o pastor manda ou votam em quem acredita que leva adiante as pautas que interessam ao seu grupo social?

Em 2015, o jornalista Felipe Neves fez um documentário interessantíssimo que desmistifica muito da relação entre pastores e fiéis e também entre a igreja e política. Claro que existem interesses e tentativa de eleger candidatos utilizando o poder religioso, a questão é isso dar certo ou não. Em "Púlpito & Parlamento", o jornalista acompanha o dia-a-dia de mulheres simples e fiéis fervorosas de igrejas pentecostais da periferia de São Paulo. Ouve também diversos políticos evangélicos. Para quem ainda confunde essas lideranças com a estrutura de autoridade central da igreja católica, está aí uma grande oportunidade de conhecer melhor este universo.

Chega a ser bastante curiosa a tentativa de atribuir poder religioso às autoridades protestantes, quando a teologia reformada diz que todo o poder vem de Deus. Ao contrário do que reza o imaginário de boa parte da mídia e da elite, pastores não são despachantes de Jesus nem fiéis são crianças inocentes a quem precisa se dizer em que acreditar. Obviamente há abusos, como em toda relação que envolve confiança e subjetividade. Mas o preconceito salta aos olhos quando se propõe tutelar evangélicos, o que jamais é feito, por exemplo, com as tribos sociais que acreditam na panaceia da maconha, em tarot, astrologia ou discos voadores.

Até hoje, não conheci um evangélico que goste de político no altar, mas a defesa da pauta de costumes é muito importante para uma população que tem todas as dificuldades do mundo para conduzir os filhos no caminho correto. A maioria da população evangélica é de mulheres negras da periferia, o estereótipo da pessoa a quem nossas elites gostam de dar ordens. Ocorre que talvez elas não estejam mais a fim de obedecer e têm esse direito.

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É ano eleitoral e políticos sempre se engalfinham pelo apoio dos pastores evangélicos com os maiores rebanhos. Há os que participam de cultos e até subam ao púlpito para falar, o que não é punido pela lei eleitoral se não houver pedido explícito de voto. Lembro de um culto na Assembleia de Deus em 2014 em que a presidente Dilma Rousseff disse: "O Brasil é um Estado laico, mas, citando um salmo de Davi, eu queria dizer que feliz é a nação cujo Deus é o Senhor”. Foi aplaudidíssima. No encerramento, o então candidato a deputado Eduardo Cunha, orou: "Que Deus tenha misericórdia dessa nação". Foram aplaudidíssimos e, aparentemente, a oração deu certo.