A notícia correu feito um rastilho de pólvora, caso daqueles em que informação mesmo não tem, mas sobra gente querendo se aproveitar das circunstâncias. Houve quem cumpriu o dever de noticiar o fato e, em seguida, surgem dois tipos de abutres: os que criam fantasias em cima do fato para ganhar com cliques e os que fazem uso político de uma tragédia para ganhar likes.
Meu sonho é que um dia as meninas como essa, de 12 anos, que se defendeu na espingarda, recebessem da Justiça o mesmo tratamento dispensado a autoridades que desviam dinheiro. Pensem que paraíso seria se tivessem rapidez, atenção e respeito.
Sabe-se muito pouco do caso, ocorrido no último sábado, num sítio em Pista do Cabeça, zona rural de Alta Floresta, Mato Grosso. Um rapaz de 27 anos que trabalhava em um filão - pequeno garimpo aos fundos da propriedade - foi baleado pela filha do dono. A única versão que se sabe é a dele, já que a menina fugiu após os disparos.
Ele relata que foi ao sítio tomar banho, mas a menina disse que não era para ninguém entrar. Como ele entrou mesmo assim, a garota de 12 anos deu dois tiros nele com uma espingarda calibre 22. Um pegou no braço e outro no pulmão. Ele pediu socorro na cidade, foi levado ao hospital e precisou fazer uma drenagem no pulmão. O quadro é estável e ele está fora de risco. Os nomes dos envolvidos não foram divulgados.
Quem conhece a realidade dos rincões do Brasil sabe que o caso não é tão incomum, infelizmente. Chega a ser assustador que nenhum meio de comunicação local tenha tido a curiosidade de perguntar por que uma menininha de 12 anos aprendeu a mexer tão bem com uma espingarda e tem acesso a ela. A resposta é triste: porque precisa.
Durante a última campanha, quando valentões de sapatênis debatiam teorias surreais sobre porte de arma e autodefesa, passou quase despercebida uma fala da candidata Marina Silva sobre o dia-a-dia das meninas da zona rural. Foi absorvida por gente que não tem compromisso com o Brasil como se fosse uma incoerência no discurso sobre armas. Quem tem esse fetiche realmente não consegue ver outra coisa no universo, carece de enxergar o drama da infância perdida e dos estupros contra adolescentes.
À revista Marie Claire, Marina Silva relatou uma realidade de antes até do controle remoto. Uma época em que não havia TV a cabo, celular, internet, nada disso que transformou as nossas vidas. Essa revolução também mudou muita coisa na zona rural, o agro brasileiro soube usar a tecnologia para crescer de uma forma impressionante. No entanto, nada disso serviu para mudar o dia-a-dia dramático das meninas da zona rural do Brasil, elas ainda têm a mesma vida que teve Marina Silva, talvez com um celular nas mãos.
"Quando éramos crianças, tínhamos uma espingarda. Eu e minhas irmãs a levávamos para cortar a seringa. Só uma delas sabia atirar e a gente se dividia na estrada para fazer o serviço mais rápido. Ou seja… não adiantava muita coisa. Mas havia esse medo porque éramos ali talvez as únicas mulheres que cortavam seringa. Minha mãe tinha medo por ser um espaço dos homens. As meninas casavam muito cedo. Havia, inclusive, uma cultura de encomendar casamentos. Como pertenço a uma família de matriarcas, esse tipo de proposta nem chegava perto. Minha mãe era uma tigresa na defesa do feminino e, pelo lado do meu pai, minha avó era a matriarca forte." - disse Marina Silva
A boçalidade humana, presente em todos os momentos, se encarregou de ver uma única coisa nesse relato e na história da menina de 12 anos: a espingarda. Houve, claro, gente baixa moralmente o suficiente para publicar mentiras que deixaram muitos de coração na mão - eu recebi duas vezes hoje essa notícia mentirosa. Um site daqueles que têm cara de jornalístico mas não passam de safadeza montou uma história com foto e tudo da menina presa e acusada de homicídio. É uma foto falsa e uma acusação que, caso existisse, seria segredo de Justiça: ela é menor de idade.
Muita gente de boa fé divulga esse tipo de boato porque fica indignada e não sabe que é mentira. Há uma escória que produz esse tipo de material porque ganha com cliques na matéria. Devem estar felicíssimos hoje.
Também houve, obviamente, os políticos oportunistas. Sabem que uma história assim mobiliza as pessoas e querem faturar principalmente nas redes sociais. O desafio é achar uma forma de chamar a atenção e parecer que está fazendo alguma coisa sem realmente ter de se mexer para ajudar a menina. Há várias formas de fazer isso: falando do decreto de armas, debatendo legítima defesa ou excludente de ilicitude, criticando a cobertura da mídia, defendendo o porte de arma. Essas reações são todas legítimas quando vindas de cidadãos e até da imprensa, mas são marketing puro se vêm de alguém que pode ajudar a menina e não o fez.
Recentemente, a Folha de S. Paulo obteve, via Lei de Acesso à Informação, dados inéditos do Ministério da Saúde sobre estupro. A realidade das nossas crianças é estarrecedora e todos os políticos que querem ser respeitados devem se engajar na luta para mudar essa situação. Se você imagina que é ruim, preste atenção nos seguintes números, fornecidos pelo governo com base em registros de saúde em todo o Brasil:
72% dos registros de violência sexual têm como vítimas menores de idade
18% dos estupros são cometidos contra crianças de menos de CINCO anos
68% dos estupros ocorrem na casa da vítima
48% dos casos envolvem estupradores são conhecidos da vítima
42% dos casos de estupros em menores de idade envolvem vítimas recorrentes
Diante dessa realidade, se você fosse uma autoridade, que providências tomaria ao ouvir que uma menina de 12 anos deu 2 tiros em um conhecido do pai que tentou entrar na casa dela após ela dizer não? Espero que não seja rodar a baiana em rede social e nada além disso.
Não é possível que nossas autoridades fechem os olhos para um drama tão assustador e que deixa marcas profundas em cada vítima, em cada família atingida, na sociedade como um todo. Cadê esses parlamentares de fortes pulmões para gritar pedindo apoio a esta menina? Não sabemos se ela foi atendida, se está segura, se isso aconteceu outras vezes, por que reagiu dessa maneira, se outras crianças são obrigadas a vivenciar o mesmo na região onde ela mora. Ninguém perguntou.
Ao cidadão comum resta tomar consciência do problema, cobrar soluções do Poder Público, ajudar no que for possível e, principalmente, parar de tratar político como bebezinho. Se foi pedir voto do povo para ter autoridade, que resolva. Se prestou concurso para ter autoridade até morrer, que resolva. Gritar muito na internet é para quem não tem o poder da caneta.
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