Na era da polarização por excelência, existe um único amálgama que une extremistas políticos além do apetite pela treta: a crença antivacina. Claro que, na esquerda se tenta jogar o fardo para a direita e, na direita, se tenta jogar o fardo para a esquerda. Nenhum grupo quer assumir um vexame desse tamanho. Vacinas não funcionam individualmente, mas coletivamente. É necessário ter um percentual da população vacinada para que funcionem. O antivacina é o triunfo do individualismo e da falta de responsabilidade.
Os militantes mais radicais não têm a menor vergonha de inventar teorias fantásticas e conspiratórias sobre vacinas, mas a política estabelecida quer se distanciar dessa imagem sem abrir mão deste público. Os antivacinas aceitos pelos partidos têm um discurso mais civilizado: são a favor das vacinas, mas contra a obrigatoriedade. E há vários deles, em todos os matizes ideológicos.
Se o guru Olavo de Carvalho instrui seus seguidores a jamais vacinarem os filhos, políticos que o seguem não podem repetir um discurso desse tipo. Não há partido que aceite uma insanidade dessas, que coloca a vida de pessoas em risco. Além disso, os parlamentares vivem no Brasil, ao alcance da lei, o que não é o caso do ideólogo. Como fazem para não contrariar? Saem pela tangente, dizem que nem toda vacina é tão garantida, já houve problemas com algumas, as famílias deveriam poder decidir em alguns casos, o Estado não pode mandar mais nas crianças que as famílias, por aí vai. Discursos muito interessantes, mas que não têm nenhuma relação com vacinação.
O que a esquerda e progressistas em geral pensam sobre Olavo de Carvalho? Nem me arrisco a começar. Falam do guru dos filhos do presidente, de vários parlamentares, juízes, integrantes do Ministério Público, funcionários públicos e comunicadores como se fosse uma personificação de entidade demoníaca, não um ser humano. Por isso é especialmente interessante que as teorias olavistas sobre vacina prosperem também na esquerda e entre progressistas.
A resistência a vacinas veio primeiro do medo da novidade, que é natural no ser humano. A medicina era algo rudimentar até fins do século XIX, pessoas morriam por bobagem, havia tratamentos que hoje parecem loucura. Daí se descobre que era possível injetar um pouco de doença no corpo para fazer o corpo imune a uma doença. Óbvio que, num primeiro momento, aquilo deixou as pessoas assustadas. Depois, até pelo resultado efetivo da prevenção, as pessoas compreenderam a descoberta.
Na minha cabeça, essa história de vacina obrigatória violar direito individual tinha ficado enterrada lá em 1904, com os positivistas que apoiaram a Revolta da Vacina. Só descobri que essa mentalidade havia atravessado o século quando fui trabalhar com vacinação, em Angola, no ano de 2010.
Esta semana a poliomielite foi erradicada do continente africano e eu tenho muito orgulho de ter feito parte dessa história. Mas foi lá que eu conheci uma espécie de crendice gourmet que me assustou pelo egoísmo e inconsequência: os antivacina. Pensava eu que os resistentes seriam os ignorantes ou fanáticos religiosos. Puro preconceito da minha parte. Esses se pode convencer porque têm empatia pelas crianças que podem sofrer. Os antivacina não, para eles ter razão está acima de qualquer vida humana, inclusive dos próprios filhos.
Naquela época, 10 anos atrás, a militância virtual ainda começava. Os radicais não eram tão valorizados quanto são hoje e a polarização ainda não havia se tornado o principal combustível da política. Anos depois, imaginei que em algum momento direita e esquerda iriam se dividir quanto ao que fazer com os antivacina, talvez eles se aglomerassem em apenas uma delas. Engano meu, são o único movimento de negação da responsabilidade com a coletividade que consegue encontrar abrigo em todos os matizes ideológicos mesmo na polarização.
Pela primeira vez chega ao Supremo Tribunal Federal uma ação tratando do tema. O casal não quer vacinar os filhos porque segue uma filosofia que não permite. Olavismo? Não, veganismo. De acordo com eles, o veganismo prioriza intervenções "não invasivas". Inúmeros outros veganos vacinam os filhos. Há diversas ações semelhantes na Justiça movidas por razões religiosas. Os pais alegam que, de acordo com a igreja deles, não podem "contaminar" os filhos com vacinas. Em alguns processos, os pais chegam a mostrar os "estudos" que eles próprios fizeram mostrando que uma determinada vacina faz mal.
O mais interessante desse raciocínio, que floresce no ambiente político de esquerda e de direita, é o culto ao egoísmo e ao interesse pessoal. Por que os pais são mais humanos ou mais sujeitos de direito que as crianças? O direito à saúde da criança não se sobrepõe ao direito de opinião e crendice dos pais? Não são perguntas jurídicas nem retóricas, simplesmente aflige que seja tão natural a convivência com pessoas que pensam assim.
Uma grande confusão sobre vacinação começou em 1998, quando um artigo falso foi publicado na revista científica Lancet. O médico Andrew Wakefield, que inclusive perdeu a licença depois, dizia que a vacina tríplice viral - contra sarampo, rubéola e caxumba - provocava autismo. Ele só não contou que recebia honorários de advogados que processavam empresas farmacêuticas por danos vacinais e que aquele artigo, sem nenhuma base de pesquisa, seria usado em processos judiciais. Mas é óbvio que assustou muita gente e começou a ter impacto onde a vacina não era obrigatória.
Os Estados Unidos erradicaram o sarampo no ano 2000, mas ele acabou voltando. A vacinação, que não era obrigatória por lá, passou a ser nos últimos anos em diversos Estados, depois de mortes evitáveis por sarampo. No princípio, os grupos que se negavam a receber vacinas eram tão insignificantes que não afetavam a imunidade geral. Depois dos boatos, que ganharam força sobretudo na classe média e entre pessoas que estudaram, a situação mudou.
Por aqui, felizmente, esses grupos ainda não são tão numerosos. A última grande mobilização que uniu esquerda e direita foi contra a vacina do HPV, que nem era obrigatória. Na direita, grupos religiosos diziam que incentivava a sexualidade. Na esquerda, ONGs libertárias faziam postagens catastróficas sobre efeitos colaterais. Mesmo assim, 80% do público-alvo foi vacinado pelo governo porque ainda temos a cultura da imunização.
As vacinas obrigatórias no Brasil não são todas as que existem no universo, são apenas algumas já muito tradicionais e testadas, que fazem parte do Calendário Nacional de Imunização do Ministério da Saúde. A maioria delas é dada até os 15 meses de idade e as primeiras são aplicadas logo após o nascimento do bebê. Para se ter uma ideia, nem a vacina da gripe é obrigatória. Ou seja, quando alguém contesta obrigatoriedade de vacinas, está falando daquelas mais importantes e já testadas e de eficácia comprovada por gerações.
Obviamente, na militância política, essas pessoas apelarão para a teoria, as liberdades, as vacinas ainda em teste, as inovações. Por que as famílias têm de ser obrigadas a aplicar nas crianças vacinas que ainda não têm a eficácia comprovada e que a gente não sabe os efeitos colaterais no longo prazo? São ótimas postagens de rede social, feitas da mais pura mentira. Esse tipo de vacina não é obrigatória.
A luta dos individualistas é para sua opinião ou fantasia seja oficialmente considerada mais importante do que o direito à saúde dos outros seres humanos. Pouco importam a ciência, a comprovação durante gerações da eficácia da política de vacinação, a obrigatoriedade apenas de um rol de vacinas que têm efeitos colaterais mínimos e passageiros. O que importa é comprovar a vitória da individualidade em suas últimas consequências, do capricho de um sobre a saúde do outro.
Se a gente pensar que o debate é sobre vacinas, ele parece completamente absurdo. Como alguém que não tem conhecimento nem formação na área quer contestar políticas consagradas do Ministério da Saúde, com base em imunização coletiva? O debate não é esse, é sobre poder. E aí faz muito sentido. Há os que se consideram mais iguais que os outros e essa é uma grande oportunidade de mostrar que são mesmo. Curioso que os partidos políticos não tenham percebido o perigo de criar esses corvos.
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