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Depois de ser vinculado diretamente à queda nos números de vacinação no mundo, o YouTube prometeu a proibição dos vídeos antivacina. Mas um levantamento publicado hoje no jornal científico internacional Frontiers in Communication mostra que, no Brasil, os vídeos antivacina são recomendados pela plataforma aos usuários. Estima-se que 70% do conteúdo consumido no YouTube é fruto do sistema de recomendações, que a empresa jamais explicou como funciona.
Se você imagina que o debate é sobre coronavírus ou envolve políticos histéricos e seus blogueiros amestrados, o resultado do estudo publicado hoje vai surpreender você. Os canais de desinformação sobre vacinas formam um complexo ecossistema que envolve desde veganos até fanáticos religiosos, com o aval de profissionais da Saúde. São negócios que vendem milhões em aulas e produtos e que parecem inofensivos.
Após a pandemia, o debate político emprestou algumas das estratégias clássicas do movimento antivacina para conquistar novos adeptos sem afugentar pessoas. Eles não se dizem antivacina, são "pró-escolha", pelo "consentimento informado" e pela "liberdade na saúde". A troca de palavras também tem outro benefício, o de driblar muitos dos mecanismos das plataformas de mídias sociais para identificar esses conteúdos. São termos que chamam para um debate inútil e infindável, mas com alto poder de engajar pessoas.
"Apesar das declarações do YouTube sobre sua luta contra a desinformação, verificamos que os canais já identificados como criadores de desinformação prejudicial continuam a oferecer vídeos questionáveis ao público, com muitos deles ainda fazendo parte do Programa de Parceria do YouTube. Em nossa amostra, encontramos uma comunidade de criadores de conteúdo que colaboram para promover serviços de saúde alternativos, enquanto divulgam desinformação sobre vacinas. Esses canais têm ganhos financeiros com a venda de cursos, livros e tratamentos alternativos, solicitando doações por meio de plataformas de captação de recursos e depósitos em contas bancárias e até mesmo de grandes empresas, por meio de anúncios no YouTube", concluem os pesquisadores.
É o primeiro grande estudo sobre vídeos brasileiros. O material de desinformação sobre vacina nas redes sociais estudado pelos acadêmicos é, geralmente, em língua inglesa. Este material foi produzido em cooperação entre a Unicamp, a Universidade de Berkeley nos Estados Unidos e o Instituto de Pesquisa e Educação Aberta Globalmente Distribuída (IGDORE) da Suécia. Os pesquisadores responsáveis são Dayane Fumiyo Tokojima Machado, Alexandre Fioravante de Siqueira e Leda Gitahy.
A análise se tornou possível porque os cientistas da área de dados estão continuamente desenvolvendo sistemas de computador que sejam capazes de extrair das redes sociais informações que elas não mostram como, por exemplo, quais são os canais relacionados entre si, quais vídeos são relacionados a outro e como se forma a teia de relações em um determinado nicho. O ponto de partida da pesquisa é a mais antiga e perigosa lorota sobre vacina, a história da relação com autismo. Foram buscados vídeos com as palavras vacina e autismo, todos com mais de 10 mil visualizações, conectados a uma rede de vídeos similiares e com alta interatividade.
Sobraram 191 vídeos que foram assistidos na íntegra e 33 deles foram descartados porque não possuíam desinformação, o objetivo do estudo. Eram, por exemplo, relatos científicos e jornalísticos sobre a Revolta da Vacina, citando os boatos que circularam no Brasil no início do século XX. Ou seja, embora realmente contivessem os boatos, não eram vídeos feitos para validá-los, pelo contrário.
Quantas mentiras é possível alguém inventar sobre as vacinas consagradas, usadas há décadas e que já erradicaram doenças? São tantas que os pesquisadores classificam a desinformação e a informação errada sobre vacinação em 6 categorias diferentes, com base nos boatos mais famosos no Brasil.
1. Segurança: vacinas causam doenças (A); pessoas vacinadas transmitem a doença (B); vacinas causam autismo (C); as vacinas causam efeitos colaterais graves (D); as vacinas contêm ingredientes perigosos (E); é mais seguro contrair a doença do que vacinar (F); as vacinas podem prejudicar o sistema imunológico (G); sobrecarga de vacinas e suas consequências (H); esquemas de vacinação alternativos são mais seguros (I)
2. Efetividade: vacinas não funcionam (J); as vacinas não são responsáveis pela diminuição das doenças (K) 3. Saúde alternativa: promoção de alternativas à vacinação, principalmente serviços naturopáticos e de bem-estar (L)
4. Moralidade: associação entre vacina contra HPV e promiscuidade, e / ou questões religiosas (M)
5. Teorias da conspiração: narrativas sobre instituições poderosas ou atores com intenções nefastas e planos secretos (N)
6. Outros: autodireção - liberdade de escolha, pesquisa independente (O); alegam que quem conhece a “verdade” não vacina (P); apelo emocional (Q)
A pauta antivacina é mais forte fora da política
Foram identificados os 20 canais que mais se dedicam a espalhar material antivacina e 8 deles são canais verificados, sendo que dois têm relação com programas que passam na televisão brasileira e outros 6 são produzidos pelos criadores:
A partir deste canal, chega-se a uma teia de produtores de conteúdo que, dentro e fora da mídia tradicional fomentam o movimento antivacina. Um reproduz conteúdo do outro ou se refere ao outro constantemente. Além disso, todos aprovam e endossam profissionais que defendem medicina alternativa, medicina quântica e terapias naturais que aceitem a desinformação sobre vacinas.
Os canais não só são verificados como veiculam anúncios de pelo menos 39 marcas: 5econds, 7 Springs Orthopedics, Adler Pharma, Andreas Grosz, Banza, Baumdick, Boiron, Bondic, Buscopan (Boehringer Ingelheim), Christen in Not, Datrium, Digital Dream Lifestyle, DG Achieve, Erie Metal Roofs, Eucerin (Beiersdorf), Fiat, Happn, Health and Wellness Tools, Incredible India, Japan Gov, Kia, Leap4Freedom, Lecturio, Lume Deodorant, Mindvalley, Mobil, OPPO, Patrick van Diemen, Philips, PragerU, RapidfFN, SDI Broker, SEAT, Spotify, Ticketmaster, The Online Traveler, Unichamp, Vileda, eWeiterdenker.
Entre os anunciantes há os que provavelmente não imaginam que estão pagando para produtores de conteúdo antivacina como, por exemplo, o governo japonês, que financia programas de vacinação em países pobres. Mas há outras marcas que fazem parte do ecossistema que se beneficia da teoria da conspiração, vendendo produtos "alternativos" e sem comprovação científica.
Como fazer alguém acreditar, por exemplo, que vacinas devem ser substituídas por vitamina D alternativa? Primeiro criam-se as dúvidas, falando de conspirações, dos interesses da indústria farmacêutica e, então, entram os "testemunhos". São casos concretos, na maioria das vezes mentirosos, atestando que só o tratamento alternativo vendido pelo grupo funciona. Então, as pessoas passam a ser conectadas por grupos de whatsapp e telegram.
"Uma estratégia utilizada por seis canais é pedir depoimentos do público, com o objetivo de demonstrar a eficácia das terapias alternativas ou cursos que promovem. Além do envio de depoimentos, o público tem acesso a outros serviços por meio de plataformas de mídia social, como WhatsApp ou Telegram. Alguns canais enviam diariamente 'dicas de saúde', oferecem descontos em produtos e afirmam que a utilização desses serviços é necessária para garantir que o público receba novos conteúdos. Cinco de 20 canais disponibilizam esses serviços de comunicação e um canal mantém 10 grupos de WhatsApp", diz o estudo.
Há anos a desinformação sobre vacinas via redes sociais virou um ótimo negócio para quem vende produtos alternativos, não comprovados ou não autorizados por órgãos oficiais. Como a existência desse mercado depende exclusivamente da conivência das redes sociais e ele tem feito cair índices de vacinação e ressuscitado doenças antigas, há pressão no mundo todo para que não se dê tanto incentivo à produção de desinformação.
Primeiramente, o YouTube proibiu que produtores de conteúdo antivacina fizessem anúncios pagos na plataforma. Depois, disse que iria proibir que esses produtores monetizassem seus vídeos. Então, concluiu que o conteúdo seria automaticamente banido. Depois disso, em fevereiro desde ano, começou o estudo sobre os canais brasileiros. "Vinte e três vídeos foram enviados em 2018; sete foram carregados em 2017 e seis carregados em 2019. A amostra também teve vídeos carregados em 2016 (dois), 2015 (cinco), 2014 (três), 2011 (dois) e 2010 (quatro). De 23 vídeos carregados em 2018, oito ainda tinham anúncios associados. Enquanto extraímos os dados de nossa amostra, os vídeos enviados em 2018 acumularam 445.519 visualizações", concluiu a pesquisa.
O problema NÃO é o conteúdo, é o grupo
Há muitos anos a venda de produtos alternativos e não comprovados que, supostamente, curariam todas as doenças é moda nos programas vespertinos da televisão. O conteúdo dito hoje em dia pelos grupos antivacina são muito menos incisivos e nocivos do que, por exemplo, a falsa pesquisa ligando vacina a autismo, que chegou a ser publicada numa revista científica em 1998 e repercutiu no mundo todo. Foram necessários anos para que a mentira fosse descoberta e o autor recebesse a punição merecida. Atualmente, ele é uma das celebridades do submundo antivacina da internet, enriqueceu vendendo livros, produtos e cursos.
Não emburrecemos nos últimos anos, evoluímos. Ocorre que essa evolução hoje possibilita que picaretas menos talentosos tenham à mão tecnologia para conseguir tocar no ponto fraco de pessoas que pretendem enganar. Unidos, um referendando o outro, tiram das pessoas a confiança nas instituições e passam a ser a referência de verdade.
"A colaboração na rede de desinformação sobre vacinas assemelha-se ao comportamento da Rede de Influência Alternativa (AIN), conforme descrito por Lewis (2018). A AIN é uma rede de criadores de conteúdo no YouTube que é impulsionada por um 'conjunto de ideias compartilhadas sobre política progressista e justiça social' e que usa, entre outras coisas, referências e participações de diferentes criadores em vídeos como uma estratégia para construir um público (Lewis, 2018). Além disso, a AIN espalha a desconfiança sobre a grande mídia para se apresentar como um sistema de mídia 'alternativo', alega uma suposta perseguição por causa de suas crenças, incentiva o público a fazer 'suas próprias pesquisas' e usa diferentes estratégias para monetizar o conteúdo. Segundo Tripodi (2018), além de possibilitar o alcance de novos e maiores públicos, a estratégia da rede ajuda a reafirmar as mesmas narrativas e posicionamentos entre os canais", explica a pesquisa.
Se você é conservador e acredita na medicina tradicional, muito provavelmente não é o alvo preferencial das propagandas de tratamentos alternativos. Há momentos, no entanto, em que qualquer um de nós pode ficar vulnerável à ação de um aventureiro, o desespero com a própria saúde ou a de algum familiar. Se fosse possível enviar um vídeo a você comentando sobre aquele tratamento específico, os erros da indústria farmacêutica e uma opção alternativa justo em um desses momentos? Hoje é possível e esse é o principal negócio das plataformas: marketing direcionado.
Todas as empresas e meios de comunicação tradicionais se valem dessa ferramenta, inclusive eu. Quando promovemos nosso trabalho, temos a opção de fazer com que as plataformas o direcionem para audiências específicas. Ocorre que apenas alguns tipos de negócios são totalmente dependentes de plataformas: os picaretas. Como não funcionam na vida real, são completamente dependentes de um esquema que os ajude a enganar pessoas.
Não há como convencer alguém facilmente das boçalidades que vemos circular nas redes sociais, mas isso nem é necessário, basta confundir as pessoas e apresentar um grupo como único espaço confiável. Isso começa com os progressistas e justiceiros sociais de teclado como método, mas chega a todos os matizes ideológicos. Talvez não exista nada no mundo mais democrático que a picaretagem.
Um primeiro passo é ter o grupo unido sempre com a mesma conversa, desmerecendo tudo o que é instituído, conhecido e representa segurança para as pessoas. Então a ciência não presta, universidade não garante nada, a imprensa é golpista, as instituições não são confiáveis, as grandes corporações manipulam as pessoas. E quem presta? Só aqueles "novos" especialistas, os que se definem como alternativos, que "desafiam o sistema" e são "perseguidos" por isso. Eles repetem os mesmos bordões, batem nas mesmas teclas de desconfiança e um sempre se refere ao outro, seja para endossar ou para criar uma briga artificial. Aqui falamos de vacina, mas é um método aplicado em diversos outros nichos de mercado, não apenas saúde.
"Descobrimos que a desinformação sobre vacinas está associada a canais alternativos de saúde que espalham a desconfiança sobre as instituições tradicionais - organizações de saúde pública, médicos, cientistas, universidades e a mídia convencional - para promover e lucrar com serviços de saúde alternativos. O YouTube deve adotar abordagens transparentes para combater a desinformação e garantir que os criadores de conteúdo sigam as políticas do usuário. A plataforma também precisa garantir que a desinformação não será estimulada financeiramente por meio do Programa de Parcerias do YouTube", recomendam os pesquisadores.
As redes sociais passam agora por um processo muito parecido daquele pelo qual passaram as indústrias do amianto e do tabaco no século passado. Já descobriram como prejudicam as pessoas e sabem que ainda podem continuar um tempo lucrando com o sofrimento alheio sem indenizar ninguém. Por enquanto, levam o barco dizendo desconhecer os males que causam, não ter controle sobre eles ou promovendo ações barulhentas de marketing que supostamente eliminariam os problemas.
A mesma tecnologia que é um avanço enorme, trouxe muitos benefícios e ajuda muita gente também produziu a mais poderosa máquina de propaganda que a humanidade já teve. Não é possível que, enquanto regulamos todos os outros setores dos negócios no mundo, este setor específico não precise obedecer regra nenhuma nem os mais mínimos princípios éticos. Muitos governos estão agindo e o nosso desafio é como combater, com leis nacionais, empresas que atuam no nível global e mentem sem sofrer consequências.