Quando vi a foto do bezerro de ouro instalado à frente da Bolsa de Valores de São Paulo, imediatamente lembrei do saudoso Nelson Rodrigues. "Complexo de vira-latas" é uma das expressões mais bem acabadas do nosso idioma e poucas imagens a definem tão bem quanto a nova estátua. Na comparação com a original de Nova Iorque, tem aquele clima típico da nossa 25 de março, que fica a poucas quadras da Bovespa.
A ideia de colocar a estátua ali também é, de certa forma, um retrato perfeito do rodriguiano "complexo de vira-latas". O mercado mundial está em alerta depois que o FBI alertou sobre os ataques de ramsomware focados em processos de fusões e aquisições para manipular preços e chantagear. A gente resolveu fazer uma espécie de "carreta furacão" de uma estátua na frente da bolsa de Wall Street.
Não veja isso como deboche e sequer como crítica. Sou uma das maiores fãs da carreta furacão. Verdade seja dita, a Bovespa é menor que na Apple sozinha. É o que somos, o cover. O sonho de infância era conhecer o Homem Aranha de verdade, o Superman, os heróis todos. Acabamos num parque de diversões em Osasco em que o mesmo senhor de meia idade é o Homem Aranha, o cobrador de ticket da montanha-russa e palhaço.
O problema é que agora o vilão do filme real, que só pode ser derrotado pelo Homem Aranha de verdade, ataca em qualquer lugar do mundo. E a gente tem o senhor Jurandir, pessoa honrada, mas não o Peter Parker. Recorri a toda essa ficção porque já vivemos num mundo que parece ficção. Criminosos virtuais já são capazes de interferir no mercado financeiro.
Na semana em que o sistema do FBI foi invadido por criminosos digitais, a agência divulgou que quadrilhas de ramsomware já miram em manipular fusões e aquisições em bolsas de valores por todo o mundo. A coordenação de alguns ataques de sequestro de dados já tem consequências no valor de algumas criptomoedas. Criminosos dessa área foram favorecidos pelo movimento este ano. Ainda bem que botaram o bezerro de ouro aqui. Agora não atacam mais nossas empresas nem impedem operações na Bovespa.
O primeiro artigo que eu escrevi sobre ramsomware foi há exatamente dois anos, novembro de 2019. Tivemos naquela época o primeiro grande ataque no Brasil, que paralisou operações de um porto. Este artigo detalha de maneira bem didática o golpe, que era ainda uma novidade por aqui. O avanço da tecnologia também faz com que o crime evolua rapidamente. Hoje, o ramsomware é um ramo bilionário do crime que tem até uma agência do FBI dedicada exclusivamente à prática.
O último mês foi de grandes emoções para empresas brasileiras. A CVC teve seus sistemas invadidos no início de outubro e ficou 12 dias sem poder operar na bolsa. As ações perderam mais de 12% no período e também houve prejuízo em vendas devido ao sequestro do banco de dados. Outra gigante do setor, a Submarino Viagens, também foi vítima de um ataque do mesmo tipo este ano. Renner, Grupo Fleury e Porto Seguros também passaram pelo problema. A JBS admitiu ter pago US$ 11 milhões de resgate a uma quadrilha de ramsomware.
Segundo uma pesquisa da empresa Fortinet, os ataques virtuais no Brasil e na América Latina dobraram do ano passado para cá. O porte das empresas que os criminosos conseguem atingir assusta. Em 2019, o ramsomware sequestrava dados de pequenas e médias empresas, com sistemas de segurança medianos, pedia resgates baixos. Agora pega US$ 11 milhões da gigante JBS e consegue tirar a CVC da bolsa de valores por mais de 10 dias. Até o
Tesouro Direto foi alvo. Não quero assustar, mas talvez o boi-bumbá de ouro não adiante.
Depois de tudo isso, a coisa piorou. As quadrilhas recebem em criptomoedas e conseguem manipular o mercado para que elas sejam valorizadas, descobriu-se recentemente. O Congresso dos Estados Unidos já começou a trabalhar numa análise desse sistema, que é complexo, para tentar uma nova regulamentação. Bem financiados, os criminosos conseguem evoluir ainda mais e agora passaram dos limites.
Semana passada, o FBI emitiu um alerta geral de ataque ramsomware. Não era o FBI avisando, era um ataque criminoso aos servidores mandando um aviso falso de ataque a meio mundo. Ocorre que lá as coisas também andam. Se esse tipo de ataque parece o crime perfeito, não é, deixa rastro. Na semana passada, o FBI prendeu um ucraniano envolvido no ataque contra a empresa de software Kaseya este ano. Foram recuperados US$ 6,1 milhões pagos como resgate em bitcoins.
O governo dos Estados Unidos protegia a bolsa com homenagens e imagens icônicas no tempo do onça. Agora protege criando mecanismos que evitem fragilidades reais. O programa contra ramsomware criado em julho já prendeu vários criminosos e recuperou milhões em criptomoedas pagos como resgate. Avalia se a gente tivesse feito isso em vez de copiar estátua. Poderia ter sido cruel. O parquinho de areia antialérgia ia fazer o quê hoje para defender o universo sem uma estátua para xingar?
Para mim, ou não benzeram o bezerro de ouro da B3 ou benzeram errado. Ele teve mais ou menos o mesmo efeito de enterrar uma cabeça de burro. Atraiu uma manifestação de todo o parque de areia antialérgica da Vila Madalena reclamando contra o capitalismo. Nossos intelectuais de botequim recorrem à antropologia freestyle para fazer teses de Twitter sobre o nosso bonecão do Kinder Ovo. Demonstram toda sua estatura moral.
Sem querer impor minha fé aos outros mas já impondo, São Paulo tem colonização Jesuíta, é cristã. Vai dar certo se proteger com um bezerro de ouro? Não vai. Sem querer dar spoiler, mas na Bíblia conta que foi uma ziquizira tremenda. Não é nada, não é nada, o sistema de emissão de Nota Fiscal Eletrônica da capital caiu no sábado e até agora não ressuscitou. Talvez esse povo Caxias do FBI quisesse também botar uma perícia digital em campo. Aqui é Brasil. Ainda não decidimos entre o sal grosso e a vassoura atrás da porta.
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