| Foto: Erin Clark
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Muita gente nos movimentos identitários está surpresa com a crueldade de algumas pessoas que usam a causa para justificar a própria perversidade. Quem já foi alvo dos movimentos não vê a menor surpresa. Todo grupo que se julga moralmente superior tende a criar tiranetes, lideranças cruéis que jamais revêem atitudes ou posicionamentos porque se consideram necessariamente boas. A era da hiperconectividade, a partir de 2010, reforçou esse processo em que falar é mais importante que as atitudes e frutos.

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Minha dúvida ainda é qual o limite que um ativista precisa cruzar para que seu grupo o reconheça como radical ou agressivo? Confessar um estupro com orgulho supostamente seria suficiente para alguém deixar de ser linha de frente de movimentos que lutam por paz e igualdade. Não foi. É uma história real, ocorrida de 2016 a 2018 nos Estados Unidos.

Trata-se de um drama humano tratado à luz das teorias identitárias e não da ciência. Uma pessoa que passou por abusos terríveis na infância tenta superar seus traumas negando a própria individualidade. Coloca na identidade de grupo, negra e trans, o motivo e a solução de todos os problemas individuais. Só que esses problemas e suas potenciais consequências continuam latentes e vão fazer uma reviravolta perversa quando a ativista chega ao topo do poder.

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Cherno Biko chegou a ser retratada pela revista Time como uma das vozes mais importantes em defesa de mulheres e trans negras vítimas de violência. Ela é co-fundadora do movimento Black Lives Matter, que surgiu em 2014. A história de vida da ativista trans é bem pesada. Ela diz ter sido estuprada por um familiar desde os três anos de idade. A violência persistiu durante mais seis anos. Como muitas vítimas de estupro na infância, ela conta ter tentado sufocar essas memórias. Foi aí que encontrou o ativismo.

Abraçou a causa da violência contra mulheres negras e trans, começou a se destacar e ganhou muito espaço na mídia. O episódio 115 da série Glee, Transitioning, é sobre ela. Esteve em vários documentários importantes, inclusie um que ganhou o Emmy. Desfilou por alguns dos programas de TV mais importantes dos Estados Unidos e acabou fazendo do ativismo uma profissão. Palestrante e consultora, focava principalmente na violência sexual contra mulheres.

Até então, ninguém sabia que a ativista trans Cherno Biko jamais havia tido uma relação sexual consentida, havia sido apenas estuprada. Ela resolveu escrever um texto público com um desabafo em 24 de julho de 2016. Neste mesmo texto, contou que sua primeira experiência sexual consentida foi estuprando um homem trans. Esperava ter filhos negros e não binários. Instalou-se o escândalo, mas não acabou a militância.

No campo progressista, qualquer pergunta sobre transexualidade rende imediatamente o cancelamento por motivo de transfobia. Disforia de gênero existe, é algo que a ciência explica e precisamos acolher essas pessoas na sociedade. Ocorre que isso é muito diferente de, por exemplo, chamar de transfóbicos os homens e mulheres lésbicas que não querem ter relações sexuais com pessoas que tenham órgão sexual masculino. Vira algo místico, dissociado da ciência. Sexualidade humana é desejo e as pessoas têm diversas preferências, não pode se impor uma preferência a alguém.

Estávamos, no caso concreto, diante de uma confissão pública de estupro com o objetivo de fazer bebês negros e não binários, algo extremamente grave. Só que essa pessoa tinha, além da fama e poder, uma carta na manga: quem a contraria é cancelado imediatamente pela militância. No caso falamos de militância trans e da fundadora do Black Lives Matter. Se você acha que, a partir desse momento, passou a haver um caso de polícia, engana-se. A ativista trans continuou brilhando.

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Como a pessoa estuprada nasceu mulher, mas dizia se identificar como homem branco e era parte do movimento identitário, não havia dado queixa do estupro por concluir que era culpada. Depois que o caso veio à tona, declarou que adquiriu os privilégios do patriarcado ao se tornar homem, tendo superioridade física e anatômica quando se compara com Cherno Biko. Surgiram outras denúncias de estupro. No meio dessa discussão pública, a ativista foi chamada para discursar na Marcha das Mulheres em Washington.

Várias organizações de defesa das mulheres e organizações conservadoras questionaram duramente a irresponsabilidade de deixar alguém que confessou publicamente estupro e estava sendo acusada por outros à frente de luta contra a violência sexual. Não estivéssemos vivendo uma distopia, seria óbvio. Aqui não se trata nem de apurar os fatos para ver se a pessoa realmente tinha feito isso, ela própria havia confessado. Disse ainda que não via como estupro o estupro que cometeu.

“À medida que comecei a aprender mais sobre consentimento, descobri que, segundo a lei [do Estado de Nova York], é impossível para uma pessoa mentalmente instável dar consentimento. Lutei com essa ideia porque ela não deixa espaço para vários graus de doença mental ou para pessoas que sofrem de doença mental, mas nunca foram diagnosticadas como eu.”, declarou a ativista Cherno Biko. Foi questão de dias para que passasse a vítima do caso, mostrando como o racismo, a transfobia e o capacitismo faziam com que o julgamento fosse mais pesado que de um homem branco cis. O mais impressionante é que colou.

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Após a confissão pública de estupro, além de ser convidada para falar na Marcha das Mulheres de Washington, a ativista continuava sendo membro do Conselho Consultivo de Mulheres Jovens da cidade de Nova Iorque. A atuação da militância trans começava a ter um problema real ao distribuir justiça por critério identitário, sem sequer levar em conta as ações das pessoas. Na cidade, uma lei pune com multa de até US$ 250 mil quem se referir de maneira pejorativa a uma pessoa trans.

Essa lei aparentemente bem intencionada acabou inibindo o registro de outros estupros, aqueles que não foram confessados pela ativista trans. Havia a possibilidade de que ela considerasse pejorativa uma referência ao próprio órgão sexual pelo nome, o que seria inevitável para prestar uma queixa dessa natureza. Assim, ela poderia processar a vítima por nomear seu órgão sexual na denúncia de estupro, com possibilidade de receber uma polpuda indenização.

Na época, a ativista trans Cherno Biko era uma das estrelas do debate nacional sobre o uso de banheiros femininos nas escolas, banheiros únicos e a possibilidade de manter trans em presídios femininos. E continuou sendo referência mesmo depois de confessar publicamente um estupro. Se isso não foi suficiente para a militância identitária repensar seus métodos, eu não sei o que seria. Espero que algo traga um despertar.

Diante desse tipo de aberração, muitas pessoas tendem a focar no conteúdo. Por não verem credibilidade em quem age diferente do que prega, muitos invalidam a causa em si. É um erro grotesco dizer que não há pessoas trans ou que o racismo já foi superado quando vemos casos do tipo. Pode ser tentador, mas é incorreto pensar que todas as pessoas envolvidas nessas causas se comportam assim. Há grupos sectários reunidos em torno de diversos temas e o problema não está no tema em si, mas no contexto.

Sempre houve radicais e intolerantes em todo tipo de grupo, a diferença é o efeito que eles causam em uma sociedade hiperconectada como ficou a nossa. A militância que parte de ideias místicas tem grande probabilidade de se converter em um grupo autoritário. Na esquerda há o conceito de Woke, aquele grupo que já passou por um "acordar" para as estruturas injustas. Na direita há o conceito de "Red Pill", aqueles que enxergam tramas porque estão fora da Matrix. É uma forma concreta de negar dignidade a quem não faz parte do grupo.

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A linha de corte entre grupos democráticos e autoritários é o respeito à dignidade do outro, principalmente do adversário. Um estupro é o exemplo lapidar de desconsideração da dignidade alheia. Muitos grupos cunham termos próprios para operacionalizar esse processo. Quem fala aqueles termos é ouvido, já que é Woke ou Redpillado. Quem não domina o vocabulário é ouvido só para que se ache um erro a corrigir naquela fala ou postura, ainda que imaginário.

Muito tempo atrás, alguém deu a dica de olhar os frutos. Pouco importa o que a pessoa diz, como aparece, quem fala dela. Olhem os frutos. É o contexto, não o conteúdo. Gostamos de ter razão, criamos afeição para quem diz exatamente o que pensamos. Como hoje há muitos jeitos de falar o tempo todo, multiplicam-se as oportunidades para liderar um grupo em torno de uma causa. Temos colhido diversos tipos de frutos envenenados. Não é possível continuar dando espaço de liderança a pessoas que deixam um rastro de destruição por onde passam. Atualmente, isso é um esporte mundial.