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Avião não cai sozinho: o que não te contaram sobre André do Rap
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Responda com toda sinceridade: você já havia ouvido falar em André do Rap antes do julgamento no STF? Eu não havia ou não lembrava, tantos são os escândalos que se intercalam no noticiário nacional. Na era da hiperinformação e das redes sociais, somos praticamente obrigados a ter opinião sobre tudo e é uma vergonha admitir um erro ou não saber de um assunto. Fui procurar e achei a história de quando ele foi preso, numa operação da Polícia Civil de São Paulo em Angra dos Reis, Rio de Janeiro, em setembro do ano passado.

Era um domingo, o dia em que morreu o cantor Roberto Leal. A grande manchete não a prisão do tal André do Rap, mas a tentativa de desidratar o pacote anticrime de Sergio Moro. Ironia do destino, sairia daí o dispositivo legal que o soltaria. Mas esta é apenas a cereja de um bolo de confusões e omissões que transformam a tentativa de enfrentar o crime organizado em um financiamento da Universidade do Crime.

Agora, associações de juízes e promotores se mobilizam na imprensa apontando o dedo para o Congresso Nacional e para o presidente Jair Bolsonaro. Criminalizar a política está na moda faz uns anos, então a tentativa de ganhar no grito é a jogada clássica para esconder falhas e evitar a autocrítica. Não há como explicar ao cidadão brasileiro, por meio de tecnicalidades e brechas jurídicas, o fato de um traficante internacional que já estava há anos na mira da Interpol sair do presídio pela porta da frente. Mas é essencial compreender que nem sempre a culpa é de maquinações maquiavélicas do Executivo e do Legislativo. Este é um caso clássico do clichê "de boas intenções o inferno está cheio".

"Se não bastassem os tantos responsáveis pelos equívocos narrados, há quem ainda precise buscar culpados do outro lado da Praça dos Três Poderes", disse o ministro Gilmar Mendes no voto do caso André do Rap. Ele defende uma autocrítica da Justiça, processo que também é necessário para que nós, da imprensa, deixemos de colaborar com os atores de uma tragédia de erros que premia bandidos e esculacha inocentes.

A "Operação Oversea", que chegou a André Oliveira Macedo como uma ligação entre os traficantes do PCC e as máfias italianas, tem dezenas de presos, procurados e processos judiciais. O traficante também é réu em inúmeros processos, tanto na Justiça Federal quanto na Justiça Estadual de São Paulo. Caso não houvesse falhas em todos esses processos, seria impossível o resultado da soltura meses após esforços gigantescos da Polícia Civil pela captura. Houve falhas de todos no processo que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal e transmitido para todo o país. Mas elas não seriam suficientes para soltar o traficante caso não houvesse falhas também nos outros processos em que ele é réu.

Começo pelo processo específico que chegou ao STF e volto ao voto do ministro Gilmar Mendes: "A gravíssima situação fática subjacente a este processo deve impulsionar, ao meu ver, um exercício de autocrítica de dentro para fora do Poder Judiciário. Não hesito em afirmar que a evasão de um paciente com porte de periculosidade assustador só foi possível graças a uma convergência de falhas na inércia do Ministério Público Federal, conjugada com erros judiciários e uma patente escassez de espírito público na atuação de alguns partícipes deste processo. Avião não cai sozinho. Além da inércia do Ministério Público e do Juiz de primeiro grau, o andar trôpego do processo se iniciou ainda na sua entrada neste Supremo Tribunal Federal. O caso em tela deve servir de escola para o aprimoramento da sistemática de distribuição de processos por prevenção nesta Corte."

Qual foi a falha no STF? A cadeia de distribuição de processos. No dia 28 de maio, um outro réu da Operação Oversea, Mário Henrique Garcia Santos, entrou com pedido de habeas corpus no STF ele foi distribuído para a ministra Rosa Weber. Ocorre que o réu também era parte de outra ação em que havia um pedido de habeas corpus no STF, o de Jefferson Moreira da Silva, que já havia sido distribuído para o ministro Marco Aurélio Mello. A ministra questionou o então presidente da corte, Dias Toffoli, se estava correta a distribuição ou se ela deveria encaminhar o processo a Marco Aurélio. A resposta foi que Rosa Weber é quem cuidava de tudo relacionado à Operação Oversea.

No dia 29 de junho deste ano, a defesa de André do Rap entrou com pedido de habeas corpus relativo ao processo da Operação Oversea e ele imediatamente foi para a ministra Rosa Weber. Aí começa a confusão. Logo após o recesso do Judiciário, em 6 de agosto, a defesa simplesmente desistiu do pedido de habeas corpus, então ele foi arquivado. Depois, a defesa entrou com outro pedido de habeas corpus, que acabou indo parar no gabinete do ministro Marco Aurélio Mello. Há uma versão famosa na imprensa de que o pedido foi feito no sábado para que o ministro o recebesse no plantão judiciário: é mentira, o plantão só existe durante o recesso, não aos finais de semana.

No dia 6 de outubro, uma terça-feira, o ministro Marco Aurélio Mello decidiu pela soltura de André do Rap e mandou a decisão para análise do Ministério Público, da Procuradoria-Geral da República. Não são necessários mais de dois parágrafos para contestar a decisão e pedir a manutenção da prisão. No entanto, o Ministério Público só fez a contestação no sábado, às 19h46, depois que a soltura já havia se concretizado.

Foi depois disso que o presidente do STF, Luiz Fux, deu decisão determinando que o réu ficasse preso. Depois, tivemos um julgamento espetacular envolvendo todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. Nossos olhos ficam atentos ao que é mais transparente, mas me pergunto quantos são os casos semelhantes e como a nossa Justiça lida com as pessoas que não têm o mesmo fôlego financeiro de um traficante internacional para contratar advogados de primeira linha.

Gostamos de pensar que tudo é problema dos políticos e que a solução de todas as nossas aflições está a uma canetada de distância. Associações de promotores e juízes ganham espaço na mídia defendendo que o presidente Bolsonaro só concordou com a revisão de prisões a cada 90 dias para proteger apaniguados. Dizem que o Congresso Nacional está cheio de corruptos interessados nessa regra. Corruptos presos são menos de 1% do sistema carcerário. Se todas as autoridades da Justiça trabalhassem direito, a regra não teria efeito para soltar corruptos e nem para soltar o tal André do Rap.

André do Rap, um velho conhecido da Justiça

Só depois de ser preso, em setembro do ano passado, André do Rap contratou uma defesa à altura de seu status financeiro. Mas ele tem uma longa ficha de processos tanto na Justiça Federal quanto na Justiça Estadual de São Paulo. O mais antigo é de 2004, em que ele passou dois anos preso e acabou liberado por "completa nulidade da ação penal".

O problema de 14 anos atrás era o mesmo de agora, o excesso de prazo na formação de culpa. Na época, André do Rap era processado por tráfico de drogas junto com dois outros réus. Um deles, que ostenta diversas condenações de prisão e de penas alternativas, acionou a Justiça reclamando da demora na demonstração da culpa dos 3 réus presos. Em 11 de abril de 2006, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo declarou que a ação era nula desde a denúncia criminal. O acórdão foi publicado no Diário Oficial de 27 de outubro de 2006, determinando a soltura de todos os réus, inclusive André do Rap.

Até então não se tratava de um grande traficante nem de um líder de facção criminosa. Fica sempre o questionamento: como um detento sobrevive em uma penitenciária brasileira sem se relacionar com uma facção criminosa? Atualmente, 30% dos presidiários do Brasil não foram julgados nem em primeira instância e 41% não foram julgados na segunda instância. Todos eles estão sob o jugo de organizações que atualmente se expandem internacionalmente.

Depois de solto, André do Rap fez apresentações musicais sofríveis e operações criminais que renderam outros processos judiciais. É curioso que, mesmo depois da primeira liberação, o Ministério Público de São Paulo tenha concordado que ele respondesse em liberdade pelos crimes que cometeu. A acusação demorou 12 anos, veja bem, DOZE ANOS, para informar ao juiz que se tratava de réu perigoso. Só o fez depois que o caso ganhou as manchetes pela decisão do ministro Marco Aurélio Mello no STF. Caso a advertência tivesse sido feita antes, seria levada em conta na decisão final.

Este é somente um caso das centenas que acabaram este ano no Supremo Tribunal Federal com pedidos de habeas corpus. Quantos "Andrés do Rap" existem no Brasil e não se tornaram famosos porque não servem interesses de categorias poderosas? Se é possível tirar uma lição dessa tragédia, que seja a de não piorarmos o que já está ruim.

Colocamos nosso foco, como cidadãos, no Governo Federal, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal. Mas não é porque os problemas estejam lá ou porque eles realmente possam resolver, é porque eles são os mais transparentes, têm falhas que podemos ver. Sozinhas, as cúpulas dos Poderes não produziriam um "André do Rap". Está na hora de cobrar dos que apontam o dedo sem mover um dedo para que nossa realidade mude.

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